Arrasta-se por dez anos animada discussão judicial relativa aos poderes das autoridades fazendárias no que se refere à obtenção de informações sobre contribuintes, diretamente junto aos bancos. A altercação, no entanto, estaria com os dias contados. É que o Supremo Tribunal Federal irá julgar ¿ em definitivo ¿ um Recurso Extraordinário (RE 601.314) ao qual se atribuiu repercussão geral.
A decisão neste recurso fará jurisprudência em todos os outros processos que tratem do mesmo assunto. Retorna-se à mística do sigilo fiscal, problema que enfrento em face do fórum global sobre transparência e troca de informações para propósitos tributários, a ser realizado em Bermudas, em 31 de maio e 1º junho desde ano.
Teme-se que decisão que restrinja substancialmente a celeridade de atuação fazendária possa reverter-se contra a posição brasileira na ordem internacional. Constata-se contexto favorável a medidas que promovam efetiva assistência entre os países no que se refere à fiscalização e cobrança de tributos, bem como no combate ao ilícito fiscal, por intermédio do envio de informações com conteúdo significativo e que decorram da transferência de sigilo, fiscal e bancário. É da transferência de dados de que se cuida, e que se defende, e não de sua quebra, como açodadamente alguns querem entender. Além do que, como argumento, a questão deve ser levada para outro plano, de dimensão internacional.
Um dos casos de sigilo que o STF está julgando (RE 389.808) radica num mandado de segurança individual impetrado por empresa que fora notificada em processo administrativo fiscal a propósito da movimentação de cerca de 30 milhões de reais, no ano-calendário de 1998. A empresa não havia informado ao fisco que movimentara tais valores, no momento fixado pela legislação. Descumprimento de obrigação tributária acessória. Simplesmente.
O mandado de segurança não prosperou junto à 2º Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que decidiu que o acesso da autoridade fiscal a dados relativos à movimentação financeira dos contribuintes, no bojo de procedimento fiscal regularmente instaurado, não afronta, a priori, os direitos e garantias individuais de inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas e da inviolabilidade do sigilo de dados (...) conforme entendimento sedimentado no tribunal. Em face desta decisão o interessado interpôs recurso extraordinário que o STF conheceu, e que bem mais tarde deu provimento. Antes da decisão, e com objetivo de se dar efeito suspensivo ativo ao recurso interposto, o interessado também aforou ação cautelar, que o STF conheceu, e que no mérito não deu provimento. Há decisões conflitantes nestas duas ações, o extraordinário e a cautelar. Quid?
O problema leva-nos ao ano de 1998, ano da suposta omissão de rendimentos. A cautelar para se dar efeito suspensivo ao recurso extraordinário é de 2003. A liminar na cautelar foi deferida pelo Ministro relator ainda em 2003. Em 2009 a questão voltou ao Plenário. Em 24 de novembro de 2010 julgou-se o mérito da cautelar. A liminar caiu, por 6 a 4. Na ação cautelar, entendeu-se que a Administração fiscal tem acesso direto aos dados bancários.
Entre os vários argumentos apresentados, assentou-se que o sigilo não é absoluto, que se deve respeitar a razoabilidade, que os dados apenas transitam entre as instituições bancárias e o fisco (e que portanto não há quebra de sigilo), que a regra constitucional do sigilo protege o dado contra a revelação pública. Os que sufragam a posição do relator insistiram na reserva do judiciário.
No entanto, no Recurso Extraordinário, por 5 a 4, reverteu-se o entendimento, forte, entre outros, em percepções de dignidade da pessoa humana, núcleo do voto condutor do relator. Há, assim, duas decisões opostas, conflitantes, acenando-se com o abantesma da insegurança jurídica. A linha vencedora centra-se na proteção do sigilo e da intimidade. A posição vencida apóia-se na instrumentalidade das formas, na relatividade da invocação de direitos fundamentais e, especialmente, no fato de que a situação enceta transferência de dados e não quebra de sigilo.
A decisão contrária ao fisco, insista-se, foi prolatada no contexto de um mandado de segurança individual. A vitória da impetrante deu-se por maioria simples. E porque não se alcançou a cláusula da reserva de plenário (art. 97 da Constituição) a decisão apenas se projeta nos contornos do recurso extraordinário discutido. Permanecem incólumes os artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, bem como os dispositivos do Decreto nº 3.724, do mesmo dia e ano. As autoridades fazendárias podem (e devem) dirigir-se diretamente aos bancos, com o objetivo de identificar patrimônio, rendimentos e atividades econômicas de contribuintes, nas hipóteses que a legislação de regência contempla, a exemplo de processo administrativo fiscal em andamento.
A discussão, no entanto, deve ser travada num ambiente mais ousado, ambicioso e dinâmico. Em primeiro lugar, deve-se acompanhar o artigo 26 da Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que dispõe sobre troca de informações entre autoridades competentes, na confecção e no desdobramento de tratados que cuidem de fórmulas para se evitar a bitributação internacional. A correta aplicação de tais mecanismos implica nova leitura de regras fechadas referentes ao sigilo fiscal. O mundo mudou.
A manter-se tendência do STF pode-se qualificar o Brasil como país sistematicamente refratário à ampla aplicação da diretiva da OCDE. Do ponto de vista institucional, e de desenho de modelo normativo orientado para o desenvolvimento, necessário que eventual posição destoante seja revista. O ambiente é de intensa cooperação internacional, especialmente à luz de algumas tendências e ênfases que se tem presentemente.
Exemplifico com a necessidade de avançarmos nos processos negociadores multilaterais e, em especial, na Organização Mundial do Comércio- OMC, a par de tentativas nossas de inserção na própria OCDE. Inegável a necessidade de que abandonemos reservas e restrições para o art. 26 do modelo da OCDE, como razão necessária e suficiente para a inserção definitiva de nossos interesses na constelação de países que intransigentemente combatem o ilícito fiscal. E o STF deve ser sensibilizado sobre o problema.
Um fórum global sobre transparência e troca de informações para propósitos tributários fora engendrado no ano de 2000, a partir de propostas de alguns países membros da OCDE, com o objetivo de se combater a fraude internacional, que se desdobra a partir de paraísos fiscais. Estruturou-se definitivamente em reunião no México, em 2009. Atendia-se a pressão do G-20. Pretende-se que se tenha regime simplificado e direto para acesso a informações bancárias, por parte das autoridades fazendárias, como mecanismo indicativo de transparência negocial.
O fórum conta presentemente com 95 países membros. O Brasil faz parte do grupo. Recentemente, Bostwana, Jamaica e Qatar aderiram ao modelo. Pressionou-se o Quênia, que apresentou metodologias para alcance de padrões de transparência.
Periodicamente são feitas avaliações dos ambientes jurídicos de vários países, no que se refere à indicação de mecanismos de transparência e de troca de informações. Conceberam-se termos de referências, calcados em três pilares: a) disponibilidade de dados; b) acesso aos dados por parte das autoridades fazendárias; c) trocas de informações entre autoridades competentes de países signatários de acordos. Tudo, naturalmente, dentro de estreitos limites de salvaguardas de sigilo. O muro do segredo e o escudo da discrição protegem os dados do conhecimento público. Não existem (e nem devem existir) entre o detentor da informação e a autoridade fiscal. O fórum que se realiza em Bermuda prepara relatório que será apresentado ao G-20.
Na maioria dos países do mundo (a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa Continental) não há necessidade do fisco acessar informações bancárias do contribuinte mediante ordem judicial. Apenas 18 países exigem que o fisco provoque a justiça para obter informações bancárias dos contribuintes: 16 deles são paraísos fiscais.
É este o campo para o qual se deve levar o debate. Do contrário, aos historiadores do direito do futuro a nossa geração oferecerá insuspeito enigma: num tempo em que o Judiciário debate a não judicialização da existência, o próprio judiciário invocaria, em favor próprio, a prerrogativa de autorizar que o fisco tenha (ou não) acesso a dados bancários de seus contribuintes.
Referendada posição brasileira, no sentido de se exigir autorização judicial para acesso a dados bancários do contribuinte, por parte da autoridade fiscal, corre-se o risco de que nos alistemos no sinistro rol de países refratários à transparência internacional. Um paraíso fiscal para quem não atenda a obrigação tributária acessória que radica na própria Constituição (§ 1º do art. 145). E um embaraço internacional para país pujante cuja utopia de um futuro glamoroso, na previsão de Stefan Zweig, feita no início da década de 1940, se revela no presente.
*Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é Consultor-Geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP
0 Comentários. Comente já!:
Postar um comentário