sábado, 6 de agosto de 2016

Texto: Fredie Didier, Introdução ao Direito Processual Civil



CAPÍTULO 1 - Introdução ao Direito Processual Civil


1. INTRODUÇÃO

Na introdução de um Curso de Direito Processual Civil, hão de constar as premissas teóricas que permeiam toda a obra, notadamente quando são indispensáveis à correta compreensão da Teoria Geral do Processo, da Ciência do Direito Processual Civil e do próprio Direito Processual Civil.
Este Curso pauta-se na premissa de que o direito processual civil contemporâneo deve ser compreendido a partir da resultante das relações entre o Direito Processual e a Teoria Geral do Direito, o Direito Constitucional e o respectivo Direito material.
É preciso estabelecer um diálogo doutrinário interdisciplinar'.
A relação entre o processo e o direito material, embora reconhecida há bastante tempo, deve ser continuamente lembrada e revisitada.
A Teoria Geral do Direito e o Direito Constitucional têm passado por profundas transformações nos últimos anos. Todas elas repercutiram e repercutem no direito processual.
Esse capítulo tem o objetivo de introduzir o aluno ao modelo teórico que se reputa mais adequado para a correta compreensão e aplicação do direito processual.
Primeiramente, vamos examinar a relação entre o processo e o direito material.
Depois, verificaremos de que modo as recentes transformações da metodologia jurídica repercutiram na Teoria Geral do Direito e no Direito Constitucional e, então, de que modo tudo isso repercutiu no direito processual.
Ao final, abordaremos a questão do enquadramento do direito brasileiro nos modelos de sistema jurídico conhecidos como civil law e common law.
A pretensão didática deste Curso impede maiores divagações. Os temas serão abordados com a profundidade suficiente apenas para que possam ser demonstradas as suas conexões com o direito processual.
2. CONCEITO DE PROCESSO
O processo pode ser examinado sob perspectiva vária. Variada será, pois, a sua definição.
O processo pode ser compreendido como método de criação de normas jurídicas, ato jurídico complexo (procedimento) e relação jurídica.
Sob o enfoque da Teoria da Norma jurídica, processo é o método de produção de normas jurídicas.
O poder de criação de normas (poder normativo) somente pode ser exercido processualmente. Assim, fala-se em processo legislativo (produção de normas gerais pelo Poder Legislativo), processo administrativo (produção de normas gerais e individualizadas pela Administração) e processo jurisdicional (produção de normas pela jurisdição). É possível, ainda, conceber o processo negocial, método de criação de normas jurídicas pelo exercício da autonomia privada.  Para esse livro, importa destacar a concepção de processo como método de exercício da jurisdição. Sob esse enfoque, o conceito de processo pertence à Teoria Geral do Direito , para além da Teoria Geral do Processo, que de resto é um excerto daquela.
A jurisdição exerce-se processualmente. Mas não é qualquer processo que legitima o exercício da função jurisdicional. Ou seja: não basta que tenha havido processo para que o ato jurisdicional seja válido e justo.
O método-processo deve seguir o modelo traçado na Constituição, que consagra o direito fundamental ao processo devido, com todos os seus corolários (contraditório, proibição de prova ilícita, adequação, efetividade, juiz natural, duração razoável do processo etc.). A análise do modelo de processo civil brasileiro será feita no capítulo sobre as normas fundamentais do processo civil.
O processo sob a perspectiva da Teoria do Fato jurídico é uma espécie de ato jurídico. Examina-se o processo a partir do plano da existência dos fatos jurídicos. Trata-se de um ato jurídico complexo. Processo, neste sentido, é sinônimo de procedimento.
O ato jurídico complexo é aquele "cujo suporte fáctico é complexo e formado por vários atos jurídicos. (...) No ato-complexo há um ato final, que o caracteriza, define a sua natureza e lhe dá a denominação e há o ato ou os atos condicionantes do ato final, os quais, condicionantes e final, se relacionam entre si, ordenadamente no tempo, de modo que constituem partes integrantes de um processo, definido este como um conjunto ordenado de atos destinados a um certo fim" ^
Enquadra-se o procedimento na categoria "ato-complexo de formação sucessiva": os vários atos que compõem o tipo normativo sucedem-se no tempos O procedimento é ato-complexo de formação sucessiva , porquanto seja um conjunto de atos jurídicos (atos processuais), relacionados entre si, que possuem como objetivo comum, no caso do processo judicial, a prestação jurisdicional?. O conceito de processo, também aqui, é um conceito da Teoria Geral do Direito, especialmente da Teoria Geral do Processo, que é sub-ramo daquela.
Pode-se conceber o procedimento como um gênero, de que o processo seria uma espécie. Neste sentido, processo é o procedimento estruturado em contraditório^
Sucede que, atualmente, é muito rara, talvez inexistente, a possibilidade de atuação estatal (ou privada, no exercício de um poder normativo) que não seja "processual"; ou seja, que não se realize por meio de um procedimento em contraditório. Cogita-se, então, um direito fundamental à processualização dos procedimentos: "que sustenta a processualização de âmbitos ou atividades estatais ou privadas que, até então, não eram entendidas como susceptíveis de se desenvolverem processualmente, desprendendo-se tanto da atividade jurisdicional, como da existência de litígio, acusação ou mesmo risco de privação da liberdade ou dos bens".
Ainda de acordo com a Teoria do Fato jurídico, o processo pode ser encarado como efeito jurídico; ou seja, pode-se encará-lo pela perspectiva do plano da eficácia dos fatos jurídicos. Nesse sentido, processo é o conjunto das relações jurídicas que se estabelecem entre os diversos sujeitos processuais (partes, juiz, auxiliares da justiça etc.)1c\ Essas relações jurídicas processuais formam-se em diversas combinações: autor-juiz, autor-réu, juiz-réu, autor-perito, juiz-órgão do Ministério Público etc.
Pode causar estranheza, de fato, a utilização de um mesmo termo (processo) para designar o fato jurídico e os seus respectivos efeitos jurídicos. Carnelutti apontara o problema, ao afirmar que, estando o processo regulado pelo Direito, não pode deixar de dar ensejo a relações jurídicas, que não poderiam ser ao mesmo tempo o próprio processo".
A prática, porém, é corriqueira na ciência jurídica. Prescrição, por exemplo, tanto serve para designar o ato-fato jurídico (omissão no exercício de uma situação jurídica por determinado tempo) como o efeito jurídico (encobrimento da eficácia de uma situação jurídica).
Por metonímia, pode-se afirmar que essas relações jurídicas formam uma única relação jurídica, que também se chamaria processo. Essa relação jurídica é composta por um conjunto de situações jurídicas (direitos, deveres, competências, capacidades, ônus etc.) de que são titulares todos os sujeitos do processo. É por isso que se costuma afirmar que o processo é uma relação jurídica complexa. Assim, talvez fosse mais adequado considerar o processo, sob esse viés, um conjunto (feixe) de relações jurídicas. Como ressalta Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, "há a relação jurídica processual (que não deve ser usada com a pretensão de exaurir o fenômeno processual), assim como pode haver outras tantas relações jurídicas processuais decorrentes de fatos jurídicos processuais".
É possível, em nível teórico, estabelecer um conceito de processo como relação jurídica, nestes termos. Não se pode, no entanto, definir teoricamente o conteúdo dessa relação jurídica, que deverá observar o modelo de processo estabelecido na Constituição. Ou seja: não há como saber, sem examinar o direito positivo, o perfil e o conteúdo das situações jurídicas que compõem esse feixe de situações jurídicas, chamado "processo". No caso do direito brasileiro, por exemplo, para definir o conteúdo eficacial da relação jurídica processual, será preciso compreender o devido processo legai e os seus corolários, o que será feito no capítulo sobre as normas fundamentais do processo civil.
Assim, não basta afirmar que o processo é uma relação jurídica, conceito lógico-jurídico que não engloba o respectivo conteúdo desta relação jurídica. É preciso lembrar que se trata de uma relação jurídica cujo conteúdo será determinado, primeiramente, pela Constituição e, em seguida, pelas demais normas processuais que devem observância àquela.^
Note-se que, para encarar o processo como um procedimento (ato jurídico complexo de formação sucessiva), ou, ainda como um procedimento em contraditório, segundo a visão de Fazzalari, não se faz necessário abandonar a ideia de ser o processo, também, uma relação jurídica.
O termo "processo" serve, então, tanto para designar o ato processo como a relação jurídica que dele emerge.
O art. 14 do CPC ratifica essa compreensão sobre o processo: "A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". Observe que o legislador fala em "atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas". Exatamente como ora se propõe.
3. TEORIA GERAL DO PROCESS0,  CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL
A Teoria Geral do Processo, Teoria do Processo, Teoria Geral do Direito Processual ou Teoria do Direito Processual é uma disciplina jurídica dedicada à elaboração, à organização e à articulação dos conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) processuais.
São conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) processuais todos aqueles indispensáveis à compreensão jurídica do fenômeno processual, onde quer que ele ocorra. Ou seja: são conceitos que servem como pressuposto para uma abordagem científica do Direito positivo. São exemplos: processo, competência, decisão, cognição, admissibilidade, norma processual, demanda, legitimidade, pretensão processual, capacidade de ser parte, capacidade processual, capacidade postulatória, prova, presunção e tutela jurisdicional.
A Teoria Geral do Processo é uma parte da Teoria Geral do Direito^
A Teoria Geral do Processo é, em relação à Teoria Geral do Direito, uma teoria parcial, pois se ocupa dos conceitos fundamentais relacionados ao processo, um dos fatos sociais regulados pelo Direito.
É uma disciplina filosófica, de viés epistemológico. Nesse sentido, como excerto da Epistemologia do Processo, é ramo da Filosofia do Processo.
A Teoria Geral do Processo pode ser compreendida como uma teoria geral, pois os conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos) processuais, que compõem o seu conteúdo, têm pretensão universal. Convém adjetivá-la como "geral" exatamente para que possa ser distinguida das teorias individuais do processo, que têm pretensão de servir à compreensão de determinadas realidades normativas'9, como o Direito brasileiro ou italiano.
O Direito Processual Civil é o conjunto das normas que disciplinam o processo jurisdicional civil - visto como ato-jurídico complexo ou como feixe de relações jurídicas. Compõe-se das normas que determinam o modo como o processo deve estruturar-se e as situações jurídicas que decorrem dos fatos jurídicos processuais.
A Ciência do Direito Processual Civil (Ciência Dogmática do Processo ou, simplesmente, Ciência do Processo) é o ramo do pensamento jurídico dogmático dedicado a formular as diretrizes, apresentar os fundamentos e oferecer os subsídios para as adequadas compreensão e aplicação do Direito Processual Civil. O Direito Processual Civil é o objeto desta Ciência.
Cabe à Ciência do Direito Processual Civil, por exemplo, a elaboração, articulação e sistematização dos conceitos jurídico-positivos, construídos para a compreensão de um determinado direito positivo. Um exemplo: é a Ciência do Processo que definirá o que são a apelação, uma liminar, uma decisão interlocutória, uma penhora, uma reconvenção etc., para o direito processual civil brasileiro.
Note, assim, que são dois planos distintos de linguagem: o plano normativo (Direito Processual) e o plano doutrinário (Ciência do Direito Processual). O plano da linguagem doutrinária opera sobre o plano normativo, por isso a linguagem doutrinária é considerada uma metalinguagem: linguagem (científica) sobre linguagem (normativa).
A relação entre a Teoria Geral do Processo  e a Ciência do Direito Processual é a mesma que se estabelece entre a Teoria Geral do Direito e a Ciência (dogmática) do Direito. Ambas são linguagens científicas - não normativas, pois. A relação entre esses dois níveis de linguagem é permanente e inevitável, mas é preciso que fiquem sempre claras as suas diferenças2\
A separação entre as linguagens da Teoria Geral do Processo e da Ciência do Processo é imprescindível para a boa qualidade da produção doutrinária. Há problemas de direito positivo que, por vezes, são examinados como se fossem problemas gerais. Essa falha de percepção compromete a qualidade do trabalho doutrinário.
Uma coisa é discutir o conteúdo das normas de um determinado Direito Positivo - saber a) se o juiz pode ou não determinar provas sem requerimento das partes; b) qual é o recurso cabível contra determinada decisão; c) se determinada questão pode ser alegada a qualquer tempo durante o processo; d) como se conta o prazo para a apresentação da defesa etc. Esses são problemas da Ciência do Direito Processual.
Coisa bem distinta é saber o que a) é uma decisão judicial, b) se entende por prova; c) torna uma norma processual; d) é o processo. Essas são questões anteriores à análise do Direito positivo; o aplicador do Direito deve conhecê-las antes de examinar o Direito Processual; são pressupostos para a compreensão do Direito Processual, pouco importa o conteúdo de suas normas. Esses são os problemas atinentes à Teoria Geral do Processo.
Enfim, a Teoria Geral do Processo tem como objeto a Ciência do Direito Processual (civil, penal ou trabalhista etc.), e não o Direito Processual. Ela não se preocupa com o Direito Processual; ou seja, não se atém ao conteúdo das suas normas.
É uma terceira camada de linguagem.
Direito Processual Civil (linguagem 1, normativa) = objeto da Ciência do Direito Processual Civil (linguagem 2, doutrinária).
Ciência do Direito Processual (jurisdicional, administrativo, legislativo ou privado) = objeto da Teoria Geral do Processo (linguagem 3, também doutrinária).
Há quem trate a Teoria Geral do Processo como o conjunto das normas jurídicas processuais fundamentais, principalmente as constitucionais. Teoria Geral do Processo seria, nesse sentido, um Direito Processual Geral e Fundamental". Boa parte das críticas dirigidas à Teoria Geral do Processo parte da premissa de que ela equivale à criação de um Direito Processual único, aplicável a todas as modalidades de processo2^
Essa é, inclusive, a premissa de que parte a maioria dos processualistas penais brasileiros sobre o assunto, que, por isso, rejeitam a existência de uma Teoria Geral do Processo
Os críticos incorrem em aberratio ictus: miram a Teoria Geral do Processo e acertam o direito processual unitário (civil e penal); quando investem, "armas em riste", contra a Teoria Geral do Processo, atacam o "quartel vizinho" àquele que deveriam atacai Há erro sobre o objeto criticado: Teoria Geral do Processo não é Direito Processual Unitário. A argumentação rui por causa da falha na fundação. Essas críticas partem do equívoco metodológico de confundir o produto da Filosofia do Processo (especificamente, da Teoria Geral do Processo) com o conjunto de normas jurídicas processuais, elas mesmas objeto de investigação pela Ciência Dogmática do Processo'^ Enfim, em qualquer dos casos, é mixórdia epistêmica que certamente compromete a qualidade da argumentação.
Como afirma Afrânio da Silva jardim, conhecido processualista penal brasileiro: "mais do que uma necessidade metodológica para o estudo dos vários ramos do Direito Processual, a teoria geral do processo é uma consequência inarredável do estudo sistemático das diversas categorias processuais"2^
Do mesmo modo, a Teoria Geral do Processo não se confunde com a "Parte Geral" de um Código ou de um Estatuto processual'8 Como já se viu, não devem ser confundidas as duas dimensões da linguagem jurídica: a linguagem do Direito e a linguagem da Ciência do Direito. A Parte Geral é um conjunto de enunciados normativos; é linguagem prescritiva, produto da atividade normativa. A "Parte Geral" não é a sistematização da Teoria Geral do Processo, que deve ser feita pela Epistemologia do Processo. Parte Geral é excerto de determinado diploma normativo (Códigos, estatutos etc.), composto por enunciados normativos aplicáveis a todas as demais parcelas do mencionado diploma e, eventualmente, até mesmo a outras regiões do ordenamento jurídico. Eventual sistematização da Teoria Geral do Processo daria lugar a um livro de Filosofia do Processo, tese ou manual, produto da atividade científica, não da legislativa.
4. PROCESSO E DIREITO MATERIAL. INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO. RELAÇÃO CIRCULAR ENTRE O DIREITO MATERIAL E O PROCESSUAL
O processo é um método de exercício da jurisdição. A jurisdição caracteriza-se por tutelar situações jurídicas concretamente afirmadas em um processo. Essas situações jurídicas são situações substanciais (ativas e passivas, os direitos e deveres, p. ex.) e correspondem, grosso modo, ao mérito do processo. Não há processo oco: todo processo traz a afirmação de ao menos uma situação jurídica carecedora de tutela jurisdicional. Essa situação jurídica afirmada pode ser chamada de direito material processualizado ou simplesmente direito material.
Se em todo processo há uma situação jurídica substancial afirmada ("direito material", na linguagem mais frequente), a relação entre eles é bastante íntima, como se supõe. A separação que se faz entre "direito" e "processo", importante do ponto de vista didático e científico, não pode implicar um processo neutro em relação ao direito material que corresponde ao seu objeto.
O processo deve ser compreendido, estudado e estruturado tendo em vista a situação jurídica material para a qual serve de instrumento de tutela. A essa abordagem metodológica do processo pode dar-se o nome de instrumentalismo, cuja principal virtude é estabelecer a ponte entre o direito processual e o direito material.
O termo instrumentalismo não significa qualquer espécie de diferença "hierárquica" entre o processo e o direito material. Não se pode ignorar a lição de Calmon de Passos, que não aceita a existência da "instrumentalidade do processo". Eis excerto da sua lição: " ...separar o direito, enquanto pensado, do processo comunicativo que o estrutura como linguagem, possibilitando sua concreção como ato decisório, será dissociar-se o que é indissociável. Em resumo, não há um direito independente do processo de sua enunciação, o que equivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do seu enunciar fazem um. Falar-se, pois, em instrumentalidade do processo é incorrer-se, mesmo que inconsciente e involuntariamente, em um equívoco de graves consequências, porque indutor do falso e perigoso entendimento de que é possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, o ser do direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual. Uma e outra coisa fazem um".
Calmon de Passos está certíssimo. O Direito só é após ser produzido. E o Direito se produz processualmente. Quando se fala em instrumentalidade do processo, não se quer minimizar o papel do processo na construção do direito, visto que é absolutamente indispensável, porquanto método de controle do exercício do poder. Trata-se, em verdade, de dar-lhe a sua exata função, que é a de coprotagonista. Forçar o operador jurídico a perceber que as regras processuais hão de ser interpretadas e aplicadas de acordo com a sua função, que é a de emprestar efetividade às normas materiais.
Observe que essa perspectiva é fundamental para compreender uma série de institutos processuais: a) causa de pedir (capítulo sobre formação do processo e petição inicial, neste volume do Curso); b) conteúdo da sentença e coisa julgada (v. 2 do Curso); c) intervenções de terceiro (neste volume do Curso); d) defesas do demandado (neste volume do Curso); e) princípio da adequação do processo (capítulo sobre normas fundamentais do processo civil, neste volume); f) direito probatório (v. 2 deste Curso); g) as peculiaridades do processo coletivo (v. 4 deste Curso) etc. É impossível compreender esses temas sem analisar a relação que cada um desses institutos mantém com o direito material processualizado.
Bem pensadas as coisas, a relação que se estabelece entre o direito material e o processo é circular. "O processo serve ao direito material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele"32 É como afirma Hermes Zaneti jr.:
"Continuarão existindo dois planos distintos, direito processual e direito material, porém a aceitação desta divisão não implica torná-los estanques, antes imbricá-los pelo 'nexo de finalidade' que une o instrumento ao objeto sobre o qual labora. Da mesma maneira que a música produzida pelo instrumento de quem lê a partitura se torna viva, o direito objetivo, interpretado no processo, reproduz no ordenamento jurídico um novo direito"3^
Ao processo cabe a realização dos projetos do direito material, em uma relação de complementaridade que se assemelha àquela que se estabelece entre o engenheiro e o arquiteto. O direito material sonha, projeta; ao direito processual cabe a concretização tão perfeita quanto possível desse sonho. A instrumentalidade do processo pauta-se na premissa de que o direito material coloca-se como o valor que deve presidir a criação, a interpretação e a aplicação das regras processuais.
O processualista contemporâneo não pode ignorar isso.
5. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO
A metodologia jurídica transformou-se sensivelmente a partir da segunda metade do século XX. Embora não seja este Curso o local adequado para fazer uma resenha deste processo histórico, não se pode deixar de afirmar uma quase obviedade: o Direito processual civil não ficou imune a toda essa transformação.
A compreensão e a aplicação do Direito processual não podem prescindir desta nova metodologia.
Isso não significa que devam ser desprezadas as "velhas" construções da ciência jurídica, tão ou mais imprescindíveis para a correta compreensão do fenômeno processual. Os institutos da Teoria Geral do Direito (situações jurídicas, fatos jurídicos, norma jurídica etc.) e a História do Direito e do pensamento jurídico, tradicionais objetos das investigações científicas, não podem ser ignorados. A Teoria Geral do Processo, aliás, é composta exatamente desses conceitos jurídicos fundamentais, conforme vimos em item precedente.
O que se busca realçar neste capítulo é a necessidade de um aggiornarmento do repertório teórico do operador do Direito.
É preciso, então, apontar as principais marcas do pensamento jurídico contemporâneo e examinar de que modo elas vêm interferindo no Direito processual civil e na Teoria Geral do Processo.
Sem qualquer pretensão de exaurir a investigação sobre o tema e dando relevo apenas àquelas que mais se relacionam à aplicação do Direito processual civil, eis o rol das mais importantes características do atual pensamento jurídico .
a) Reconhecimento da força normativa da Constituição, que passa a ser encarada como principal veículo normativo do sistema jurídico, com eficácia imediata e independente, em muitos casos, de intermediação legislativa.
A afirmação atualmente parece ser um truísmo. Mas nem sempre foi assim. Após a Constituição de 1988, a doutrina passou a defender a tese de que a Constituição, como fonte de normas jurídicas, deveria ser aplicada pelo órgão jurisdicional. Como explica Daniel Sarmento :
"O que hoje parece uma obviedade, era quase revolucionário numa época em que a nossa cultura jurídica hegemônica não tratava a Constituição como norma, mas como pouco mais do que um repositório de promessas grandiloquentes, cuja efetivação dependeria quase sempre da boa vontade do legislador e dos governantes de plantão. Para o constitucionalismo da efetividade, a incidência direta da Constituição sobre a realidade social, independentemente de qualquer mediação legislativa, contribuiria para tirar do papel as proclamações generosas de direitos contidas na Carta de 88, promovendo justiça, igualdade e liberdade".
Passa-se, então, de um modelo de Estado fundado na lei (Estado legislativo) para um modelo de Estado fundado na Constituição (Estado Constitucional^.
b)           Desenvolvimento da teoria dos princípios, de modo a reconhecer-lhes eficácia normativa38: o princípio deixa de ser técnica de integração do Direito e passa a ser uma espécie de norma jurídica.
c)            Transformação da hermenêutica jurídica, com o reconhecimento do papel criativo e normativo da atividade jurisdicional: a função jurisdicional passa a ser encarada como uma função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela estipulação da norma jurídica do caso concreto, seja pela interpretação dos textos normativos, definindo-se a norma geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada a casos semelhantes.
Estabelece-se, ainda, a distinção teórica entre texto e norma, sendo essa o produto da interpretação daquele39.
Há texto sem norma, bem como há norma sem texto. A norma é o produto da interpretação do sistema normativo. Veja-se o seguinte texto normativo: "Proíbe-se a utilização de biquíni". Este texto, no início do século XX, seria compreendido como uma norma que impõe o uso de roupas de banho menos sumárias. Este mesmo texto posto em alguma placa em uma praia brasileira, portuguesa, francesa etc., nos dias atuais, poderia ser compreendido como uma autorização para a prática do naturismo. Como se vê, a depender das circunstâncias históricas, o mesmo texto pode gerar normas até mesmo opostas.
Consagram-se as máximas (postulados, princípios ou regras, conforme a teoria que se adote) da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação das normas.
Identifica-se o método da concretização dos textos normativos, que passa a conviver com o método da subsunção"0^ Expande-se, ainda, a técnica legislativa das cláusulas gerais, que exigem do órgão jurisdicional um papel ainda mais ativo na criação do Direito.
d) Expansão e consagração dos direitos fundamentais, que impõem ao Direito positivo um conteúdo ético mínimo que respeite a dignidade da pessoa humana e cuja teoria jurídica se vem desenvolvendo a passos largos.
Examinadas isoladamente, essas características podem parecer não ser grande novidade: em países diversos, em momentos históricos diversos, uma ou outra aparecia no pensamento jurídico e na prática jurídica . Talvez o que marque este momento histórico seja a conjunção de todas elas, que vêm inspirando doutrinadores em inúmeros países.
Vejamos alguns exemplos de como essas transformações têm repercutido no Direito processual. Antes, porém, examinaremos uma questão de cunho terminológico e histórico: qual deve ser a designação deste estágio do desenvolvimento do Direito processual.
6. NEOCONSTITUCIONALISMO, NEOPROCESSUALISMO OU FORMALISMO VALORATIVO. A ATUAL FASE METODOLÓGICA DA CIÊNCIA DO PROCESSO
A essa fase atual do pensamento jurídico deu-se o nome de Neoconstitucionalismo"'. A designação não é das melhores, em razão da sua vagueza , mas indiscutivelmente tem apelo, razão pela qual se tem difundido com muita facilidade, principalmente nos países latinos. Há quem denomine esta fase de "pós-posi- tivismo", o que também não quer dizer muita coisa, a não ser o fato de que é um estágio posterior ao "positivismo" característico da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Talvez fosse mais adequado referir a um "positivismo jurídico reconstruído" ou neopositivismo.
Há muitas críticas ao Neoconstitucionalismo. Fugiria às pretensões didáticas deste Curso fazer uma resenha de todo pensamento sobre o tema.
Pode-se afirmar que não há dissenso em torno das características gerais desta atual fase da metodologia jurídica, apontadas no item anterior
As discussões têm por alvo a terminologia , aspecto que reputamos secundário, e os abusos e incompreensões que o oba-oba47 em torno dessas transformações tem causado.
Os abusos e incompreensões revelam-se basicamente em uma postura de supervalorização dessas "novidades": a) supervalorizam-se as normas-princípio em detrimento das normas-regra, como se aquelas sempre devessem preponderar em relação a essas e como se o sistema devesse ter mais normas-princípio do que normas-regra, ignorando o importantíssimo papel que as regras exercem no sistema jurídico: reduzir a complexidade do sistema e garantir segurança jurídica; b) supervaloriza-se o Poder judiciário em detrimento do Poder Legislativo, em grave prejuízo à democracia e à separação de poderes; c) supervaloriza-se a ponderação em detrimento da subsunção, olvidando que a subsunção é método bem adequado à aplicação das normas-regra48, de resto as espécies normativas mais abundantes no sistema.
As críticas são indispensáveis. A história do pensamento jurídico costuma desenvolver-se em movimento pendular: essas transformações puxam para um lado; as críticas, para o outro; no final do "cabo de guerra", chega-se ao equilíbrio.
A evolução histórica do direito processual costuma ser dividida em três fases:
a) praxismo ou sincretismo, em que não havia a distinção entre o processo e o direito material: o processo era estudado apenas em seus aspectos práticos, sem preocupações científicas;
b) processualismo, em que se demarcam as fronteiras entre o direito processual e o direito material, com o desenvolvimento científico das categorias processuais;
c) instrumentalismo, em que, não obstante se reconheçam as diferenças funcionais entre o direito processual e o direito material, se estabelece entre eles uma relação circular de interdependência: o direito processual concretiza e efetiva o direito material, que confere ao primeiro o seu sentido (sobre a instrumentalidade, ver item anterior). Na fase instrumentalista, o processo passa ser objeto de estudo de outras ciências jurídicas, como a sociologia do processo - que se concentrou nos estudos sobre o acesso à justiça. Além disso, há grande preocupação com a efetividade do processo, tema que não existia até então, e a tutela de novos direitos, como os coletivos.
Parece mais adequado, porém, considerar a fase atual como uma quarta fase da evolução do direito processual. Não obstante mantidas as conquistas do processualismo e do instrumentalismo, a ciência teve de avançar, e avançou.
Fala-se, então, de um Neoprocessualismo : o estudo e aplicação do Direito Processual de acordo com esse novo modelo de repertório teórico. Já há significativa bibliografia nacional que adota essa linha .
O termo Neoprocessualismo tem uma interessante função didática, pois remete rapidamente ao Neoconstitucionalismo, que, não obstante a sua polissemia, traz a reboque todas as premissas metodológicas apontadas, além de toda produção doutrinária a respeito do tema, já bastante difundida.
Demais disso, o termo Neoprocessualismo também pode ser útil por bem caracterizar um dos principais aspectos deste estágio metodológico dos estudos sobre o direito processual: a revisão das categorias processuais (cuja definição é a marca do processualismo do final do século XIX e meados do século XX), a partir de novas premissas teóricas, o que justificaria o prefixo "neo"5'.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), sob a liderança de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, costuma-se denominar esta fase do desenvolvimento do direito processual de formalismo-valorativo , exatamente para destacar a importância que se deve dar aos valores constitucionalmente protegidos na pauta de direitos fundamentais na construção e aplicação do formalismo processual. As premissas deste pensamento são exatamente as mesmas do chamado Neoprocessualismo, que, aliás, já foi considerado um formalismo ético, na expressão de Rodriguez Uribes53. Embora seja correto afirmar que se trate de uma construção teórica que nasce no contexto histórico do Neoconstitucionalismo, o formalismo-valorativo pauta-se, também, no reforço dos aspectos éticos do processo, com especial destaque para a afirmação do princípio da cooperação (examinado no capítulo sobre as normas fundamentais do processo civil), que é decorrência dos princípios do devido processo legal e da boa-fé processual. Agrega-se, aqui, o aspecto da moralidade, tão caro a boa parte dos pensadores "neoconstitucionalistas".
Este Curso segue essas premissas teóricas, com as considerações críticas feitas acima, continuamente repisadas ao longo de toda a obra.
7. A CIÊNCIA DO PROCESSO E A NOVA METODOLOGIA JURÍDICA
7.1. Constituição e processo. O art. 10 do CPC
A constitucionalização do Direito Processual é uma das características do Direito contemporâneo. O fenômeno pode ser visto em duas dimensões.
Primeiramente, há a incorporação aos textos constitucionais de normas processuais, inclusive como direito fundamentais. Praticamente todas as constituições ocidentais posteriores à Segunda Grande Guerra consagram expressamente direitos fundamentais processuais. Os tratados internacionais de direitos humanos também o fazem (Convenção Europeia de Direitos do Homem54 e o Pacto de São José da Costa Rica  são dois exemplos paradigmáticos). Os principais exemplos são o direito fundamental ao processo devido e todos os seus corolários (contraditório, juiz natural, proibição de prova ilícita etc.), que serão examinados neste Curso. Ao devido processo legal, que serve de parâmetro para a identificação de um modelo constitucional brasileiro de processo jurisdicional, dedicar-se-á boa parte do próximo capítulo.
De outro lado, a doutrina passa a examinar as normas processuais infraconstitu- cionais como concretizadoras das disposições constitucionais, valendo-se, para tanto, do repertório teórico desenvolvido pelos constitucionalistas. Intensifica-se cada vez mais o diálogo entre processualistas e constitucionalistas, com avanços de parte a parte. O aprimoramento da jurisdição constitucional, em cujo processo se permite a intervenção do amicus curiae (ver item no capítulo sobre intervenção de terceiro) e a realização de audiências públicas56, talvez seja o exemplo mais conhecido57
Cabe uma pequena digressão sobre a relação entre as normas; no caso, entre as normas processuais infraconstitucionais e as normas constitucionais. A relação entre normas infraconstitucionais e normas constitucionais não é puramente hierárquico. "o conteúdo da norma inferior deve corresponder ao conteúdo da norma superior, assim e ao mesmo tempo que o conteúdo da norma superior deve exteriorizar-se pelo conteúdo da norma inferior (...) a eficácia, em vez de unidirecional, é recíproca".
Não é, então, por acaso que o art. 1° do CPC, com forte caráter simbólico, está assim redigido: "O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código".
Do ponto de vista normativo, o enunciado reproduz uma obviedade: qualquer norma jurídica brasileira somente pode ser construída e interpretada de acordo com a Constituição Federal. A ausência de dispositivo semelhante no CPC não significaria, obviamente, que o CPC pudesse ser interpretado em desconformidade com a Constituição.
O artigo enuncia a norma elementar de um sistema constitucional: as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal.
Embora se trate de uma obviedade, é pedagógico e oportuno o alerta de que as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando em torno do princípio do devido processo legal, também de natureza constitucional.
Ele é claramente uma tomada de posição do legislador no sentido de reconhecimento da força normativa da Constituição.
E isso não é pouca coisa.
7.2. Princípios processuais
Atualmente, é muito frequente na literatura jurídica e na jurisprudência brasileira a referência aos princípios processuais. Reconhece-se a eficácia normativa direta de princípios processuais, tais como o princípio do devido processo legal e o princípio da duração razoável do processo, examinados mais à frente.
Princípio é espécie normativa. Trata-se de norma que estabelece um fim a ser atingido59. Se essa espécie normativa visa a um determinado "estado de coisas", e esse fim somente pode ser alcançado com determinados comportamentos, "esses comportamentos passam a constituir necessidades práticas sem cujos efeitos a progressiva promoção do fim não se realiza"6^ Enfim, ainda com base no pensamento de Humberto Ávila: "os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários".
O princípio pode atuar sobre outras normas de forma direta ou indireta6\
A eficácia direta de um princípio "traduz-se na atuação sem intermediação ou interposição de outro (sub-)princípio ou regra". Nesse plano, os princípios exercem uma função integrativa: permite-se agregar elementos não previstos em subprincípios ou regras. A despeito da ausência de previsão normativa expressa de um comportamento necessário à obtenção do estado de coisas almejado, o princípio irá garanti-lo.
O exemplo citado por Humberto Ávila é bem interessante. Imagine que se crie um procedimento sem a previsão para que uma parte se manifeste sobre as alegações da outra. Não há regra expressa que, no caso, concretize o princípio do devido processo legal, que, porém, garantirá diretamente o direito de defesa.
A eficácia de um princípio do processo não depende de intermediação por outras regras jurídicas, espalhadas topicamente na legislação. O princípio da boa-fé processual, por exemplo, torna devidos os comportamentos necessários à obtenção de um processo leal e cooperativo. Donde se conclui que é possível conceber situações jurídicas processuais atípicas (não expressamente previstas) decorrentes da eficácia direta com função integrativa do princípio da boa-fé processual.
Há, porém, normas que servem à concretização dos princípios processuais. Os meios para alcançar esse "estado de coisas", que o princípio busca promover, podem ser típicos, determinados por subprincípios ou por regras jurídicas, que servem para delimitar o exercício do poder e, assim, conter a arbitrariedade da autoridade jurisdicional, na construção da solução do caso que lhe for submetido.
Quando atuam com a "intermediação" de outras normas, fala-se que os princípios têm uma eficácia indireta .
As normas que servem como "ponte", a intermediar a eficácia do princípio, podem ser outros princípios (subprincípios) ou regras.
Um princípio do processo pode ser considerado um subprincípio: norma menos ampla, que se relaciona a outro princípio mais amplo. Um princípio pode, ainda, relacionar-se com regras, normas que em comparação a ele são ainda menos amplas.
Os subprincípios exercem uma função definitória em relação aos princípios (normas mais amplas, que podem ser designadas como "sobreprincípios"): delimitam com maior precisão o comando normativo estabelecido pelo sobreprincípio.
Assim, por exemplo, o princípio da boa-fé processual pode ser encarado como um subprincípio do princípio do devido processo legal (nesta relação, um sobreprincípio): o processo para ser devido (estado de coisas que se busca alcançar) precisa ser cooperativo ou leal. Cabe lembrar, ainda, que os princípios não têm pretensão de exclusividade66: um mesmo efeito jurídico (direito a um processo efetivo, p. ex.) pode ser resultado de diversos princípios (princípios do devido processo legal ou princípio da inafastabilidade da jurisdição, ambos examinados neste volume do Curso). O princípio da boa-fé, aqui examinado como um sobreprincípio, também pode ser visto como um subprincípio dos sobreprincípios do devido processo legal ou da segurança jurídica ou da dignidade da pessoa humana. Não há problema em relação a isso. O princípio do devido processo legal pode ser considerado um subprincípio do princípio do Estado de Direito ou do princípio de proteção da dignidade da pessoa humana; pode, também ser considerado um sobreprincípio, quando se relaciona com os princípios do contraditório ou da boa-fé processual.
Designar um princípio como sobre ou sub é apenas uma técnica de demonstrar em que posição o princípio está em uma relação com outro princípio.
As regras também exercem uma função definitória em relação aos princípios, na medida em que "delimitam o comportamento que deverá ser adotado para concretizar as finalidades estabelecidas pelos princípios'^ Assim, por exemplo, é exigência do princípio do contraditório que o órgão jurisdicional tenha o dever de dar oportunidade de a parte manifestar-se sobre a demanda que lhe foi dirigida. Esclarece-se, assim, que o princípio do contraditório garante o direito à defesa.
Os princípios exercem, ainda, em relação às normas menos amplas, uma função interpretativa, "na medida em que servem para interpretar normas construídas a partir de textos normativos expressos" Não se admite uma interpretação de um texto normativo que dificulte ou impeça a realização do fim almejado pelo princípio.
Os princípios exercem, enfim, uma função bloqueadora: servem para justificar a não-aplicação de textos expressamente previstos que sejam incompatíveis com o estado de coisas que se busca promover. Assim, por exemplo, o princípio do devido processo legal serve para fundamentar a não-aplicação de dispositivos normativos que permitam uma decisão judicial sem motivação.
Essa sistematização da teoria dos princípios serve, ainda, para explicar porque o Código de Processo Civil atual não reproduziu o enunciado do art. 126 do CPC/1973, que mencionava os "princípios gerais do direito" como a última fonte de integração das lacunas legislativas. Esse texto normativo era obsoleto. O juiz não decide a "lide" com base na lei; o juiz decide a "lide" conforme o "Direito", que se compõe de todo o conjunto de espécies normativas: regras e princípios. Os princípios não estão "fora" da legalidade, entendida essa como o Direito positivo: os princípios a compõem.
O CPC encampa claramente a teoria da força normativa dos princípios jurídicos. O §2o do art. 489 do CPC esmiúça o dever de fundamentação, no caso de o órgão julgador decidir por "ponderação de normas"; a ponderação é usualmente relacionada ao caso de aplicação de princípios colidentes.
7.3. A nova feição da atividade jurisdicional e o Direito processual: sistema de precedentes, criatividade judicial e cláusulas gerais processuais
A nova feição da atividade jurisdicional redesenhou o Direito processual.
De um lado, estrutura-se um sistema de precedentes judiciais, em que se reconhece eficácia normativa a determinadas orientações da jurisprudência. A proliferação das "súmulas" dos tribunais e a consagração da "súmula vinculante do STF" (art. 103-A, CF/1988) são os exemplos mais ostensivos. A complexidade do sistema brasileiro de precedentes judiciais será examinada no capítulo respectivo do v. 2 deste Curso, para onde se remete o leitor.
A criatividade da função jurisdicional é também característica atualmente bem aceita pelo pensamento jurídico contemporâneo. O tema será examinado em item próprio no capítulo sobre jurisdição, neste volume do Curso, para onde se remete o leitor.
Além disso, há as cláusulas gerais processuais.
Cláusula geral é uma espécie de texto normativo, cujo antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente (efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa em ambos os extremos da estrutura lógica normativa7'. Há várias concepções sobre as cláusulas gerais. Optamos por essa para fins didáticos, além de a considerarmos a mais adequada, mas não se ignora a existência de outras.
A técnica das "cláusulas gerais" contrapõe-se à técnica casuística72 Não há sistema jurídico exclusivamente estruturado em cláusulas gerais (que causariam uma sensação perene de insegurança a todos) ou em regras casuísticas (que tornariam o sistema sobremaneira rígido e fechado, nada adequado à complexidade da vida contemporânea). Uma das principais características dos sistemas jurídicos contemporâneos é exatamente a harmonização de enunciados normativos de ambas as espécies11.
É indiscutível que a existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo da atividade jurisdicional. O órgão julgador é chamado a interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da solução de problemas concretos que lhe são submetidos.
O método da subsunção do fato ao enunciado normativo, próprio e útil para os casos de textos normativos típicos e fechados, revela-se insuficiente para a aplicação de cláusulas gerais. As cláusulas gerais exigem concretização em vez de subsunção. "Na apreciação do caso concreto, o juiz não tem apenas de 'generalizar' o caso; tem também de 'individualizar' até certo ponto o critério; e precisamente por isso, a sua actividade não se esgota na 'subsunção'. Quanto 'mais complexos' são os aspectos peculiares do caso a decidir, 'tanto mais difícil e mais livre se torna a actividade do juiz, tanto mais se afasta da aparência da mera subsunção".
O Direito passa a ser construído a posteriori, em uma mescla de indução e dedução76, atento à complexidade da vida, que não pode ser totalmente regulada pelos esquemas lógicos reduzidos de um legislador que pensa abstrata e aprioristicamente77^ As cláusulas gerais servem para a realização da justiça do caso concreto; revelam-se, em feliz metáfora doutrinária, como "pontos de erupção da equidade'^
A relação entre cláusula geral e o precedente judicial é bastante íntima. Já se advertiu, a propósito, que a utilização da técnica das cláusulas gerais aproximou o sistema do civil law do sistema do common law. Esta relação revela-se, sobretudo, em dois aspectos. Primeiramente, a cláusula geral reforça o papel da jurisprudência na criação de normas gerais: a reiteração da aplicação de uma mesma ratio decidendi (núcleo normativo do precedente judicial; sobre a ratio decidendi, ver o capítulo sobre precedente judicial no v. 2 deste Curso) dá especificidade ao conteúdo normativo de uma cláusula geral, sem, contudo, esvaziá-la; assim ocorre, por exemplo, quando se entende que tal conduta típica é ou não exigida pelo princípio da boa-fé7^ Além disso, a cláusula geral funciona como elemento de conexão, permitindo ao juiz fundamentar a sua decisão em casos precedentemente julgados.
As cláusulas gerais desenvolveram-se inicialmente no âmbito do Direito Privado, cujos principais exemplos são as cláusulas gerais da boa-fé, da função social da propriedade e da função social do contrato.
Ultimamente, porém, as cláusulas gerais têm "invadido" o Direito processual, que naturalmente sofreu as consequências das transformações da metodologia jurídica no século passados\ Afinal, o Direito processual também necessita de "normas flexíveis que permitam atender às especiais circunstâncias do caso concreto".
O devido processo legal é o principal exemplo de cláusula geral processual. O CPC brasileiro contém outros vários exemplos de cláusulas gerais: a) cláusula geral de promoção pelo Estado da autocomposição (art. 30, §10); b) cláusula geral da boa-fé processual (art. 5°); c) cláusula geral de cooperação (art. 60); d) cláusula geral de negociação sobre o processo (art. 190); e) poder geral de cautela (art. 301; f) cláusulas gerais executivas (arts. 297, caput, e 536, § 10); g) cláusula geral do abuso do direito pelo exequente (art. 8os); h) cláusula geral de adequação do processo e da decisão em jurisdição voluntária (art. 723, par. ún.) etc.
A existência de várias cláusulas gerais rompe com o tradicional modelo de tipicidade estrita que estruturava o processo até meados do século XX.
A produção doutrinária e as manifestações jurisprudenciais sobre as cláusulas gerais são quase infinitas. Notadamente na Alemanha, há um vastíssimo número de ensaios doutrinários a respeito do tema. Tudo isso contribuiu para que as cláusulas gerais fossem aplicadas de maneira dogmaticamente aceitável e, consequentemente, de modo a que se pudessem controlar as decisões judiciais que nelas se baseassem.
O operador jurídico não pode prescindir desses subsídios na aplicação das cláusulas gerais processuais, atualmente tão abundantes.
7.4. Processo e direitos fundamentais
Atualmente, para além de princípios ou regras processuais previstos no art. 5° da CF/1988, fala-se em direitos fundamentais processuais. Vejamos a observação de Marcelo Lima Guerra:
" ...o uso de terminologias como 'garantias' ou 'princípios' pode ter o inconveniente de preservar aquela concepção das normas constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, que não reconhece a plena força positiva de tais normas, em suma, a sua aplicação imediata. Dessa forma, revela-se extremamente oportuno procurar substituir essas expressões terminológicas pela de 'direitos fundamentais', de modo a deixar explicitado a adoção desse novo marco teórico-dogmático que constitui o cerne do constitucionalismo contemporâneo, a saber, a teoria dos direitos fundamentais".
A observação é importante.
Os direitos fundamentais têm dupla dimensão: a) subjetiva: de um lado, são direitos subjetivos, que atribuem posições jurídicas de vantagem a seus titulares; b) objetiva: traduzem valores básicos e consagrados na ordem jurídica, que devem presidir a interpretação/aplicação de todo ordenamento jurídico, por todos os atores jurídicos. Trata-se de encarar o direito fundamental como norma jurídica (dimensão objetiva) ou como situação jurídica ativa (dimensão subjetiva).
"Por um lado, no âmbito de cada um dos direitos fundamentais, em volta deles ou nas relações entre eles, os preceitos constitucionais determinam espaços normativos, preenchidos por valores ou interesses humanos afirmados como bases objectivas de ordenação da vida social.
Por outro lado, a dimensão objectiva também é pensada como estrutura produtora de efeitos jurídicos, enquanto complemento e suplemento da dimensão subjectiva, na medida em que se retiram dos preceitos constitucionais efeitos que não se reconduzem totalmente às posições jurídicas subjectivas que reconhecem, ou se estabelecem deveres e obrigações, normalmente para o Estado, sem a correspondente atribuição de 'direitos' aos indivíduos".
Assim, o processo deve estar adequado à tutela efetiva dos direitos fundamentais (dimensão subjetiva) e, além disso, ele próprio deve ser estruturado de acordo com os direitos fundamentais (dimensão objetiva^
No primeiro caso, as regras processuais devem ser criadas de maneira adequada à tutela dos direitos fundamentais (daí, por exemplo, o §10 do art. 536 do CPC permitir ao magistrado a determinação de qualquer medida executiva para efetivar a sua decisão, escolhendo-a à luz das peculiaridades do caso concreto). No segundo caso, o legislador deve criar regras processuais adequadas aos direitos fundamentais, aqui encarados como normas, respeitando, por exemplo, a igualdade das partes e o contraditório.
As normas que consagram direitos fundamentais têm aplicação imediata (art. 5°, § 1°, CF/1988), obrigando o legislador a criar normas processuais em conformidade com elas e, ainda, adequadas à tutela das situações jurídicas ativas (principalmente os direitos fundamentais).
Sucede que as normas relativas a direitos fundamentais também obrigam o magistrado, que deverá proceder ao controle de constitucionalidade difuso das normas processuais quando, em um caso concreto, perceber que uma delas viola a pauta normativa constitucional. Daí surge o princípio da adequação judicial das normas processuais, que está intimamente relacionado ao controle de constitucionalidade das leis no momento da aplicação (controle incidental e concreto) e à teoria dos princípios e dos direitos fundamentais, que pregam a eficácia imediata e direta dessas normas.
Encaradas as normas constitucionais processuais como garantidoras de verdadeiros direitos fundamentais processuais, e tendo em vista a dimensão objetiva já mencionada, tiram-se as seguintes consequências: a) o magistrado deve compreender esses direitos como se compreendem os direitos fundamentais, ou seja, de modo a dar-lhes o máximo de eficácia; b) o magistrado afastará, aplicada a máxima da proporcionalidade, qualquer regra que se coloque como obstáculo irrazoável/ desproporcional à efetivação de um direito fundamental; c) o magistrado deve levar em consideração, "na realização de um direito fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a outros direitos fundamentais'^
8. APLICAÇÃO DA NORMA PROCESSUAL NO TEMPO
As normas processuais novas aplicam-se aos processos pendentes (arts. 14 e 1.046, CPC).
O art. 14 é mais completo, pois ressalva que a aplicação imediata da nova norma processual deve respeitar "os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada".
O dispositivo é muito bem escrito. Ele esclarece que não há nada de especial na aplicação de uma norma processual. A peculiaridade (se de fato existe alguma) é que o processo é uma realidade fática e jurídica bem complexa. O processo é um complexo de fatos jurídicos e de situações jurídicas, conforme demonstramos em item anterior.
O processo é uma espécie de ato jurídico. Trata-se de um ato jurídico complexo. Enquadra-se o processo na categoria "ato-complexo de formação sucessiva": os vários atos que compõem o tipo normativo sucedem-se no tempo, porquanto seja um conjunto de atos jurídicos (atos processuais), relacionados entre si, que possuem como objetivo comum, no caso do processo judicial, a prestação jurisdicional.
Cada ato que compõe o processo é um ato jurídico que merece proteção. Lei nova não pode atingir ato jurídico perfeito (art. 50, XXXVI, CF/1988), mesmo se ele for um ato jurídico processual. Por isso o art. 14 do CPC determina que se respeitem "os atos processuais praticados".
Dois exemplos: a) recurso de agravo de instrumento interposto antes da vigência do novo CPC, em hipótese para a qual hoje não é cabível esse recurso, permanecerá pendente e deverá ser julgado - a regra nova não pode atingir um ato jurídico perfeitamente praticado nos termos da legislação anterior; b) arrematação perfeita ao tempo do código revogado, não pode agora ser desfeita por conta da aplicação de regra nova, como a que decorre do art. 891, parágrafo único.
Mas o processo também pode ser encarado como um efeito jurídico.
Nesse sentido, processo é o conjunto das relações jurídicas que se estabelecem entre os diversos sujeitos processuais (partes, juiz, auxiliares da justiça etc.). Essas relações jurídicas processuais formam-se em diversas combinações: autor-juiz, autor-réu, juiz-réu, autor-perito, juiz-órgão do Ministério Público etc.
Repita-se o que se disse acima: o termo "processo" serve, então, tanto para designar o ato processo como a relação jurídica que dele emerge.
Há direitos processuais; direitos subjetivos processuais e direitos potestativos processuais - direito ao recurso, direito de produzir uma prova, direito de contestar etc. O direito processual é uma situação jurídica ativa. Uma vez adquirido pelo sujeito, o direito processual ganha proteção constitucional e não poderá ser prejudicado por lei. Lei nova não pode atingir direito adquirido (art. 5°, XXXVI, CF/1988), mesmo se for um direito adquirido processual.
Por isso o art. 14 do CPC determina que se respeitem "as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada".
Dois exemplos.
a) Publicada  a decisão, surge, para o vencido, o direito ao recurso. Se a decisão houver sido publicada ao tempo do Código revogado e contra ela coubessem, por exemplo, embargos infringentes (recurso que deixou de existir), a situação jurídica ativa "direito aos embargos infringentes" se teria consolidado; essa situação jurídica tem de ser protegida. Assim, mesmo que o novo CPC comece a viger durante a fluência do prazo para a parte interpor os embargos infringentes, não há possibilidade de a parte perder o direito a esse recurso, pois se trata de uma situação jurídica processual consolidada.
b) No CPC revogado, o Poder Público possuía prazo em quádruplo para contestar; no CPC atual, o prazo é dobrado. Com a citação, surge a situação jurídica "direito à apresentação da defesa". Assim, mesmo que o novo CPC comece a viger durante a fluência do prazo apresentação da contestação, que se iniciou na vigência do código passado, será garantido ao Poder Público o prazo em quádruplo.
A aplicação imediata da norma processual não escapa à determinação constitucional que impede a retroatividade da lei para atingir ato jurídico perfeito e direito adquirido.
Nada há de especial, no particular.
9. A TRADIÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: NEM CIVIL LAW NEM COMMON LAW
Costuma-se afirmar que o Brasil é país cujo Direito se estrutura de acordo com o paradigma do civil law, próprio da tradição jurídica romano-germânica, difundida na Europa continental.
Não parece correta essa afirmação tão peremptória.
O sistema jurídico brasileiro tem uma característica muito peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado (modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo para causas repetitivas etc.; sobre o tema, ver o capítulo respectivo no v. 2 deste Curso), de óbvia inspiração no common law. Embora tenhamos um direito privado estruturado de acordo com o modelo do direito romano, de cunho individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é uma marca da tradição jurídica do common law (sobre a tutela de direitos coletivos, no Brasil, cf. o v. 4 deste Curso).
Reforçando a tese de que a tradição jurídica brasileira é, no mínimo, peculiar, eis o art. 386 do Decreto n. 848/1890, um dos atos normativos que inaugurou a nossa República: "Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto. Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações juridicas na República dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo federal".
Este Decreto estruturava a justiça Federal e regulamentava o seu processo jurisdicional - à época, União e Estados possuíam competência legislativa em matéria processual. O curioso é que a Lei n. 5^10/1966, que reestruturou a justiça Federal, não possui enunciado semelhante, muito menos possui texto incompatível com esse antigo dispositivo. Ainda mais curioso é que este Decreto foi expressamente revogado por um Decreto n. 11 de 1991 (art. 40) - mais de cem anos depois, portanto; e este Decreto n. 11/1991 também foi revogado (revogou-se o decreto que revogava), sem ressalva alguma, pelo Decreto n. 761/1993. Interessante é que, em 1891, o Decreto n. 848/1890 equivalia a uma lei; o Decreto presidencial de 1991 já não possuía esta natureza. Assim, poderia o segundo revogar o primeiro.? Bem, de todo modo, a vigência formal por mais de cem anos deste dispositivo é um dado histórico que não pode ser ignorado.
A identificação de uma tradição jurídica não se faz apenas com a análise do sistema jurídico. É preciso investigar também o papel e a relevância dos operadores jurídicos e o modo como se ensina o Direito. No Brasil, embora a importância da opinião dos doutrinadores ainda seja bem significativa (característica do civil law), o destaque que se tem atribuído à jurisprudência (marca do common law) é notável, de que serve de exemplo a súmula vinculante do STF. Não obstante o nosso ensino jurídico se tenha inspirado no modelo da Europa Continental (principalmente de Coimbra), não se desconhecem atualmente inúmeros cursos de Direito que são es-truturados a partir do exame de casos, conforme a tradição do common law.
Os problemas jurídicos repetem-se nos mais diversos recantos do mundo. O ser humano é muito parecido, seja ele japonês, norte-americano, índio, judeu, ateu, brasileiro. A solução desses problemas variará, obviamente, conforme os modelos teóricos e os aspectos culturais de cada país. Assim, por exemplo, os problemas relacionados à boa-fé processual são resolvidos nos Estados Unidos pela cláusula do devido processo legal; na Alemanha, pela expansão do § 242 do BGB (Código Civil alemão) aos "domínios não-civis", e assim sucessivamente.
Muitas vezes, a discussão doutrinária é puramente terminológica. A questão da ilicitude do comportamento contraditório, por exemplo, foi, na Alemanha, resolvida pelo desenvolvimento da proibição do venire contra factum proprium; na Espanha e na Argentina, pela doctrina de los actos propios; e nos países do common law, pelo estoppel. Já se disse, inclusive, que a construção do venire contra factum proprium é um "common law wine in civil law bottles" Trata-se da mesma solução, com nomes e pressupostos teóricos diversos.
A observação é muito importante.
O Direito brasileiro, como seu povo, é miscigenado. E isso não é necessariamente ruim. Não há preconceitos jurídicos no Brasil: busca-se inspiração nos mais variados modelos estrangeiros, indistintamente. Um exemplo disso é o sistema de tutela de direitos coletivos: não nos consta que haja em um país de tradição romano-germânica um sistema tão bem desenvolvido e que, depois de quarenta anos, tenha mostrado bons resultados concretos (sobre o processo coletivo, conferir o v. 4 deste Curso). A experiência jurídica brasileira parece ser única; é um paradigma que precisa ser observado e mais bem estudado92
O pensamento jurídico brasileiro opera (tem de operar), com alguma desenvoltura, com marcos teóricos e metodológicos desses dois grandes modelos de sistema jurídico.
Um exemplo talvez seja útil para compreender a importância desta constatação.
Há, no Brasil, robusta produção doutrinária e vasta jurisprudência sobre o devido processo legal e a boa-fé objetiva. Operamos, sem maiores percalços, com institutos de origens diversas (o primeiro, common law, o segundo, civil law). O pensamento jurídico brasileiro começa, inclusive, a ganhar autonomia, desvinculan- do-se de sua ascendência, como demonstra a concepção brasileira sobre o devido processo legal substancial (examinada no capítulo sobre o devido processo legal, mais à frente), bem diferente da visão original estadunidense. A própria vinculação entre a boa-fé processual e o devido processo legal (também examinada no capítulo sobre o devido processo legal) é uma construção teórica brasileira, original e muito profícua.
Enfim, para bem compreender o Direito processual civil brasileiro contemporâneo não se pode ignorar essa circunstância: é preciso romper com o "dogma da ascendência genética", não comprovado empiricamente, segundo o qual o Direito brasileiro se filia a essa ou àquela tradição jurídica.
Temos uma tradição jurídica própria e bem peculiar, que, como disse um aluno em sala de aula, poderia ser designada, sem ironia ou chiste, como o brazilian law.
(DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 29-60)