sábado, 6 de agosto de 2016

Texto: Lógica Jurídica, de Chaim Parelman



Teorias relativas ao raciocínio judiciário, sobretudo em direito continental, desde o Código de Napoleão até nossos dias

15. Desde a instauração, em 1790, da obrigação de mo-tivar as decisões judiciais, é na motivação dos tribunais que encontraremos as melhores amostras da lógica jurídica. Esta é orientada pela ideologia que guia a atividade dos juízes, pela forma como eles concebem seu papel e sua missão, pela concepção deles do direito e pelas suas relações com o poder legislativo. Podemos distinguir, a este respeito, três grandes períodos, o da escola da exegese, que termina por volta de 1880, o segundo o da escola funcional e sociológica, que vai até 1945, e o terceiro, que, influenciado pelos excessos do regime nacional-socialista e pelo processo de Nurenberg, se caracteriza por uma concepção tópica do raciocínio judi-ciário.
É evidente que esta tripartição só corresponde a uma visão esquemática e simplificada da realidade, pois as técni-cas de raciocínio, características da ideologia de um período, encontram-se também em outros, mas neles são antes excep-cionais, e os juízes, ao lançar mão delas, experimentam certo mal-estar. Esta divisão servirá essencialmente para fins pedagógicos, permitindo descrever sumariamente uma evo-lução metodológica que corresponde, em linhas gerais, à realidade histórica.
No primeiro capítulo examinaremos os procedimentos de raciocínio que podem apresentar-se nas diversas fases de um processo. No segundo e terceiro capítulos examinaremos apenas os métodos de raciocínio justificados por uma nova visão do direito e por uma concepção renovada do papel do poder judiciário.

Capítulo I
A escola da exegese

16. É possível distinguir, no seio daquilo a que se chamou "A Escola da exegese", três fases: "uma fase de instauração, que começou na promulgação do Código Civil, em 1804, e terminou entre 1830 e 1840; uma fase de apogeu, que se estendeu até cerca de 1880; e por fim uma fase de declínio, que se fechou em 1899, quando a obra de Gény anunciou-lhe o fim. Estas distinções não passam, evidentemente, de cortes cinematográficos, que servem para balizar uma evolução contínua . Esta escola pretendia realizar o objetivo que se propuseram os homens da Revolução, reduzir o direito à lei, de modo mais particular, o direito civil ao Código de Napoleão. Como disse o decano Aubry, em 1857, em um relatório oficial sobre o espírito do ensino da Faculdade de Direito de Paris: "Toda a lei, tanto no espírito quanto na letra, com uma ampla aplicação de seus princípios e o mais completo desenvolvimento das conseqüências que dela decorrem, porém nada mais que a lei, tal foi a divisa dos professores do Código de Napoleão."
Vê-se logo que esta não poderia ser a concepção de Portalis nem a de nenhum dos juristas formados no século
XVIII, para os quais o direito natural formava uma espécie de pano de fundo do direito positivo. Tampouco poderíamos minimizar a imensa influência de Rudolf von Ihering (1818- 1892), cujas obras fundamentais sobre Lesprit du droit romain (1852-1865) e Le but dans le droit propagaram, mui-tos anos antes da obra de Gény, a concepção funcional do direito. Por essas razões, limitamos aos anos de 1830-1880 o período em que a escola da exegese impôs, de modo abso-luto, suas técnicas de raciocínio jurídico. Estas eram funda-mentadas, como ainda escrevia Laurent em 1878, na idéia de que "os códigos nada deixam ao arbítrio do intérprete"  e que apenas em casos deveras excepcionais a lei era verda-deiramente insuficiente.
Essa concepção, fiel à doutrina da separação dos pode-res, identifica o direito com a lei e confia aos tribunais a missão de estabelecer os fatos dos quais decorrerão as con-seqüências jurídicas, em conformidade com o sistema de di-reito em vigor.
A doutrina da separação dos poderes é ligada a uma psicologia das faculdades, em que vontade e razão consti-tuem faculdades separadas. Com efeito, "a separação dos poderes significa que há um poder, o poder legislativo, que por sua vontade fixa o direito que deve reger certa sociedade; o direito é a expressão da vontade do povo, tal como ela se manifesta nas decisões do poder legislativo. Por outro lado, o poder judiciário diz o direito, mas não o elabora. Segundo esta concepção, o juiz limita-se a aplicar o direito que lhe é dado... Essa concepção conduz a uma visão legalista; a pas-sividade do juiz satisfaz nossa necessidade de segurança jurídica. O direito é um dado que deve poder ser conhecido por todos do mesmo modo. Essa visão do direito conduz também a uma aproximação do direito com as ciências. Quer o consideremos um sistema dedutivo, quer assimilemos a uma pesagem o ato de distribuir justiça, o juiz parece tomar parte de uma operação de natureza impessoal, que lhe permitirá pesar as pretensões das partes, a gravidade dos delitos etc.... Mas, para que a pesagem seja feita de modo imparcial, desprovido de paixão - o que quer dizer, sem temor, sem ódio e também sem piedade -, é necessário que a justiça tenha os olhos vendados, que não veja as conseqüências do que faz: dura lex, sed lex. Temos aqui uma tentativa de aproximar o direito quer de um cálculo quer de uma pesagem, seja como for de algo cuja tranqüilizadora exatidão deveria poder proteger-nos contra os abusos de uma justiça corrompida como a do Antigo Regime" . Isso nos daria a idéia de que não estamos à mercê dos homens, mas ao abrigo de instituições, relativamente impessoais.
Uma vez estabelecidos os fatos, bastava formular o silogismo judiciário, cuja maior devia ser fornecida pela re-gra de direito apropriada, a menor pela constatação de que as condições previstas na regra haviam sido preenchidas, sendo a decisão dada pela conclusão do silogismo.
A doutrina devia limitar-se, nesta concepção do direito, a transformar o conjunto da legislação vigente em um sistema de direito, a elaborar a dogmática jurídica que forneceria ao juiz e aos litigantes um instrumento tão perfeito quanto possível, que conteria o conjunto das regras de direito, do qual tiraríamos a maior do silogismo judiciário.
17. Para constituir este instrumento perfeito, o sistema de direito deveria ter todas as propriedades exigidas de um sistema formal, a um só tempo completo e coerente: seria ne-cessário que para cada situação dependente da competência do juiz houvesse uma regra de direito aplicável, que não hou-vesse mais que uma, e que esta regra fosse isenta de toda ambigüidade .
Em um sistema axiomático formalizado, esta última exi-gência é sempre satisfeita, pois a linguagem artificial, ela-borada em lógica formal ou aritmética, exige a univocidade dos signos assim como as regras de seu manejo. Se o sistema é completo, deveríamos ter condições de demonstrar cada proposição formulada na linguagem ou de demonstrar sua negação. Se o sistema é coerente, deveria ser impossível de-monstrar dentro dele uma proposição e sua negação.
A univocidade dos signos e das regras de demonstração garante a eliminação de qualquer desacordo ou controvérsia concernente à sua interpretação. A exigência de coerência se impõe de modo imperativo, pois, se um sistema é incoerente, porque dele podemos deduzir uma contradição, torna- se inutilizável e faz-se necessário corrigi-lo. Quanto à terceira exigência, a de completitude, que permite decidir se uma proposição do sistema é, ou não, demonstrável, ela só é satisfeita em pouquíssimos sistemas formais, pois a maioria deles comporta proposições sobre as quais é impossível a decisão .
Ora, o artigo 4 do Código de Napoleão, ao proclamar que o juiz não pode recusar-se a julgar sob pretexto do silên-cio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, obriga-o a tra-tar o sistema de direito como completo, sem lacunas, como coerente, sem antinomias e como claro, sem ambigüidades que dêem azo a interpretações diversas. Somente diante de um sistema assim é que o papel do juiz seria conforme à mis-são que lhe cabe, a de determinar os fatos do processo e daí extrair as conseqüências jurídicas que se impõem, sem cola- borar ele próprio na elaboração da lei. Foi nesta perspectiva que os juristas da escola da exegese se empenharam em seu trabalho, procurando limitar o papel do juiz ao estabeleci-mento dos fatos e à sua subsunção sob os termos da lei.
Examinaremos um a um os procedimentos de raciocínio utilizados pelo juiz para cumprir sua missão: julgar e motivar suas decisões.
18. A primeira idéia que vem ao espírito de alguém que ignora o direito é assimilar a ação do juiz, que deve formar uma convicção sobre a materialidade dos fatos dos quais de-pende a solução de um processo, à do historiador ou do dete-tive esforçando-se para reconstituir o passado tal como foi. É por isso que é importante insistir sobre as diferenças que dis-tinguem o raciocínio do juiz, submetido às regras do processo civil ou penal, do raciocínio do pesquisador, cujas únicas preocupações são de ordem científica, o estabelecimento da verdade objetiva .
Estudando a história da prova judiciária , notaremos que no Ocidente, até o Concílio de Latrão (1215) e, às vezes, mesmo mais tarde, a prova dos fatos e mesmo a prova da justiça de uma causa era fornecida pelas ordálias, considera-das o julgamento de Deus. Quem triunfasse em um duelo, na prova da água, do fogo ou de qualquer outro meio admitido, provava assim que Deus o designara como aquele que dizia a verdade, que defendia uma causa justa.
Conforme uma tradição medieval de inspiração diferen-te, a realidade dos fatos contestados devia ser atestada pelo juramento de uma das partes, acompanhada por um número variável de "co-jurantes", cuja presença não deixava de im-pressionar o juiz. A partir do século XIII é a confissão do acusado que, cada vez mais, constitui a prova que inspira mais confiança, de modo que se buscou obtê-la por todos os meios, inclusive a tortura. Tendo-se esta generalizado, a con-fissão arrancada mediante torturas tornou-se cada vez mais suspeita: hoje, nos países civilizados, a confissão à qual se atribui mais valor é a confissão judicial, mas esta só é admi-tida como prova suficiente nas questões cíveis, em que apenas entram em jogo interesses particulares.
Sob o Antigo Regime, por causa da rejeição das ordá- lias, foram introduzidos modos de prova do direito culto, ensinado nas Universidades, quer se tratasse direito romano ou do direito canónico .
Em oposição aos direitos bárbaros, nos quais muitas vezes era o acusado que devia fornecer as provas de sua inocência, admitir-se-á que é o autor ou o acusador que deve provar aquilo que afirma. A importância do juramento, resquício das ordálias, diminui: seu papel é reduzido ao de uma prova supletiva. Os antigos co-jurantes transformam-se em testemunhas de moralidade. Aumenta a importância do depoimento, mas seu papel limita-se cada vez mais ao que as próprias testemunhas viram ou ouviram: será exigido, cada vez com mais freqüência, o depoimento de pelo menos duas testemunhas, cujos depoimentos coincidam no essencial. Distinguir-se-á a probatio plena, a que resulta de pelo menos dois depoimentos e produz uma convicção completa, da quasi probatio, que acarreta apenas uma convicção parcial. Após ter sido afastada a regra "testis unus, testis nullus", atribuir-se-á ao depoimento de um só apenas o valor de uma prova incompleta, que deverá ser completada por presunções ou indícios. Em contrapartida, os fatos notórios serão admitidos sem prova.
A partir da ordenação de Moulins de 1667, causada pelos progressos da instrução, a máxima "témoins passent lettres" (o depoimento oral prevalece sobre a prova escrita) será substituída pela proibição de testemunhar contra a prova escrita, "lettres passent témoins" (a prova escrita prevalece sobre o depoimento oral). Distinguir-se-ão então os documentos autênticos, aos quais se concederá plena confiança, a menos que venha a ser declarada sua falsidade, e os documentos reduzidos a termo em instrumento particular, emanados da pessoa em função de quem eles são produzidos, e que fornecerão uma prova pré-constituída e perfeitamente válida, a não ser que se conteste a autenticidade do texto ou da assinatura.
No final do Antigo Regime estabeleceu-se uma hierar-quia legal das provas diante da qual o juiz tinha de curvar-se, mas já no século XVIII, sob a influência dos livros de Bec-caria, principalmente em direito penal, a prova dos fatos pas-sará a depender cada vez mais da íntima convicção dos juí-zes. Este princípio triunfará na Revolução Francesa, a partir de 1791, e sua expressão mais eloqüente encontra-se na advertência que devia ser lida aos jurados ao entrarem na sala de deliberações.
"A lei não pede contas aos jurados dos meios pelos quais se convenceram, não lhes prescreve regras das quais deve-riam fazer que dependessem particularmente a plenitude e a suficiência de uma prova; prescreve-lhes interrogar-se a si mesmos no silêncio e no recolhimento e buscar, na sinceri-dade de sua consciência, a impressão que deixaram em sua razão as provas trazidas contra o réu e os meios de sua defesa. A lei não lhes diz: Tereis por verdadeiro todo fato atestado por este ou aquele número de testemunhas', tampouco lhes diz: Não considerareis como suficientemente estabelecida toda prova que não tiver sido constituída por tal processo, por tais peças, por tal número de testemunhas ou de indícios-, a lei lhes faz apenas uma pergunta, que encerra toda a amplitude de seus deveres: Tendes íntima convicção(Cf. art. 342, C. Instr. Crim.)
19. Se, nas questões cíveis de alguma importância, a prova será regulamentada - pois permanecerá a exigência da prova escrita, e mesmo, às vezes, de documentos autentica-dos -, em direito comercial, principalmente em direito penal, a importância atribuída à íntima convicção do juiz põe em primeiro plano o papel deste último; será portanto essencial assegurar-se de antemão de sua imparcialidade.
Quando se trata de um juiz togado, ele deve ter competência para o processo, conforme regras de competência previamente estabelecidas. Ninguém pode ser desviado de seu juiz natural. O artigo 94 da Constituição belga prevê expressamente que "não poderão ser criadas comissões ou tribunais especiais, sob qualquer denominação que seja". Pelo contrário, o artigo 34 da Constituição francesa, de 4 de outubro de 1958, dispõe que são do âmbito da lei "a criação de novas ordens de jurisdição e o estatuto dos magistrados". Resulta daí que uma jurisdição, qualquer que seja, só pode ser instituída por uma lei ou em aplicação de uma lei que lhe autorize a criação '".
O juiz deverá ser isento de qualquer preconceito, favo-rável ou desfavorável, sobre as partes. Se houver a menor suspeita de que seu julgamento possa ser influenciado por relações de família, amizade ou interesse, deverá declarar-se impedido (v. Novo Código de Processo Civilfrancês, art 339 ss.; Código de Processo Penal, art 668 ss.).
Quando é um júri, designado posteriormente, que é encarregado de pronunciar-se sobre a materialidade dos fatos, ambas as partes terão o direito de recusar, no momento da constituição do júri, os jurados cuja imparcialidade lhes pareça duvidosa (v. Código de Processo Penalfrancês, art. 297 ss.). Aliás, quando o processo se desenrola diante de juizes não togados, como sucede o mais das vezes nos Estados Unidos, e for necessário precaver-se contra sua inexperiência, o juiz que preside aos debates terá o direito de excluir os depoimentos por ouvir dizer, que exprimirem simples opiniões, e os que considerar irrelevantes. Notemos, entretanto, que quando se tratar da opinião, não de simples testemunhas, mas de peritos na matéria, será necessário permitir-lhes enunciá-la para esclarecer os membros do júri.
O recurso aos peritos levanta, aliás, todo o problema da prova científica dos fatos. Esta é muitas vezes indispensável para confundir os réus. Mas todos os procedimentos de in-vestigação serão admissíveis em matéria de prova? Hoje em dia, nenhum sistema de direito civilizado admite o uso da tortura. Mas até que ponto o recurso ao detector de mentiras, à hipnose ou à administração de certas drogas fere, ou não, a dignidade humana? Em que medida pode-se exigir do réu que forneça um álibi, ao passo que, em princípio, presumido inocente, tem o mais estrito direito ao silêncio"?
20. Quais os fatos que deverão ser provados? Todos os fatos pertinentes, dos quais depende a solução do processo, que não são notórios nem incontestes. Para a prova dos fatos, a confissão apenas não pode bastar em matéria criminal.
Mas o juiz tem o direito de declarar que a prova de cer-tos fatos é inadmissível. Pode recusar-se a admitir a prova de fatos irrelevantes, cuja materialidade em nada influencia a solução do processo, bem como de fatos cuja prova não é permitida como, por exemplo, quando se trata de um caso de difamação, e isto a fim de proteger a reputação de parti-culares. Também é inadmissível a prova de fatos aos quais se opõe uma presunção legal irrefragável, tal como a autoridade da coisa julgada. Assim também, o marido, pai presumido do filho concebido durante o casamento, é o único que pode recusar-se a reconhecê-lo, e isto unicamente nas condições previstas pelo Código Civil; aliás, ele dispõe apenas de um prazo de seis meses para entrar com a ação (C. Civ. francês, art. 316). Tampouco a prova de fatos cobertos pela prescrição será admitida pelo juiz .
Enquanto, em certos sistemas jurídicos, o direito de de-por é concedido apenas aos adeptos de uma dada religião, ou não se concede valor algum ao depoimento de uma única testemunha, ou se estabelece uma hierarquia entre os depoi-mentos, levando em conta a posição ou a situação social das testemunhas, nossos Códigos de Processo se caracterizam principalmente por regras de exclusão. Assim é que, segundo o artigo 268 do Código de Processo Civil belga: "Ninguém poderá ser apontado como testemunha, se for parente ou afim em linha reta de uma das partes, ou seu cônjuge, mesmo se divorciado." Não havendo oposição, parentes próximos do réu poderão ser ouvidos (art. 156, C. de Inst. Penal Belga). Mas os descendentes não podem ser ouvidos nas causas em que seus ascendentes têm interesses opostos (art. 931, C. Jud. Belga).
É passível de punição "o culpado de falso testemunho ou falsa declaração que tenha recebido dinheiro, uma recom-pensa qualquer ou promessas" (art. 224, Cód. Penal belga), mas, conforme o artigo 225 do mesmo Código, tais disposi-ções não são aplicáveis "aos menores de 16 anos, nem às pessoas ouvidas sem terem prestado juramento, em razão do parentesco consangüineo ou de afinidade que os une aos réus ou acusados quando essas declarações forem feitas a favor dos réus ou acusados".
E certo que o novo Código de Processo Civil francês es-pecifica no artigo 205 que "qualquer um pode ser ouvido como testemunha"; mas acrescenta: "exceto as pessoas incapazes de testemunhar em juízo". De outro lado, o artigo 206 declara que "podem ser dispensadas de depor as pessoas que alegarem um motivo legítimo. Podem recusar-se os parentes ou afins em linha reta de uma das partes ou seu cônjuge, mesmo divorciado". Por fim, "os descendentes nunca podem ser ouvidos sobre as ofensas invocadas pelos esposos para apoiar um pedido de divórcio ou de separação de corpos". Em matéria penal, as incapacidades de testemunhar são previstas pelos artigos 335 e 448 do Código de Processo Penal. Os casos de testemunhas suspeitas são mencionados nos artigos 335, 336 e 448. O falso testemunho e o suborno de testemunhas são punidos pelos artigos 363 e 365.
21. A quem cabe o ônus da prova? Já vimos que esta questão recebeu diversas respostas ao longo da história. No direito contemporâneo, a resposta dependerá essencialmente do papel atribuído ao juiz no decorrer do processo. Deverá este, como na concepção liberal e individualista da justiça, permanecer neutro e apreciar o valor das provas que lhe são trazidas pelas partes, ou deverá encarregar-se, como nos sis-temas das democracias populares, da busca da verdade obje-tiva? Neste último caso, será ele que dirigirá os debates e pedirá, como faz aliás o Conselho de Estado, aos detentores das provas, e sobretudo dos documentos administrativos, que os apresentem ao tribunal.
Notemos, entretanto, que a diferença entre os dois siste-mas, embora não desprezível, é temperada por regras que, de um lado, limitam a liberdade do juiz socialista e, do outro, podem tirar o juiz liberal de sua atitude passiva. Assim é que o juiz socialista deve respeitar as regras do processo, que exi-gem em certas matérias provas documentais, o respeito da coisa julgada bem como dos prazos de prescrição.
O próprio juiz liberal tem poderes importantes na con-dução do processo. Uma crítica substancial feita ao Novo Código de Processo Civil francês, promulgado em 5 de de-zembro de 1975, funda-se no papel "inquisitorial" do juiz. Este tem o poder de ordenar de ofício todas as medidas de instrução legalmente admissíveis (Cód. Proc. Civ., art. 10; C. Jud. belga, art. 916).
Ele pode, por requerimento de uma das partes, intimar que a outra parte que detém um elemento de prova o produ-za, se necessário, sob pena de prisão. Ele pode, por requeri-mento de uma das partes, pedir ou ordenar, se for o caso sob a mesma pena, a produção de todos os documentos em poder de terceiros, se não existir impedimento legítimo (Cód. Proc. Civ., art. 11; C. Jud. belga, art. 877).
O artigo precisa na alínea primeira que "as partes são obrigadas a prestar sua colaboração às medidas de instrução, cabendo ao juiz tirar todas as conseqüências de uma abstenção ou recusa".
O juiz pode, caso haja risco de prescrição da prova, proceder sem tardar à inquirição de uma testemunha, depois de ter, se possível, chamado as partes (Cód. Proc. Civ., art. 208, al. 4, art. 942 do Código Judiciário). Pode interrogar novamente as testemunhas, acareá-las entre si ou com as partes; se houver necessidade, o juiz procede à inquirição diante de um técnico (Cód. Proc. Civ., art. 215, art. 966 do Cód. Jud.). O juiz que procede ao inquérito pode, de ofício ou a pedido das partes, convocar ou interrogar qualquer pessoa cujo depoimento lhe pareça útil à manifestação da verdade (Cód. Proc. Civ., art. 218).
O juiz que ordena um inquérito determina os fatos per-tinentes que devem ser provados (Cód. Proc. Civ.,' art. 222, al. 2 - v. também art. 224, al. 2, art. 1007 do Cód. Jud.). Pode proceder imediatamente ao inquérito ou nomear peritos para esclarecê-lo (art. 232), alargando ou restringindo sua missão (art. 236), assistindo a seu trabalho e pedindo-lhes explicações (art. 241). Pode incumbir a pessoa que nomeia de proceder a constatações (arts. 249 ss.) ou, se for o caso, ordenar uma perícia (arts. 263 ss.).
Para sustentar suas pretensões as partes têm a incum-bência de alegar os fatos apropriados para fundamentá-las. (Cód. Proc. Civ., art. 6, art. 870 do C. Jud.). Cabe a cada uma das partes provar, nos termos da lei, os fatos necessários ao êxito de sua pretensão (art. 9).
22. Sempre que a prova testemunhal for admissível, ela visará estabelecer a íntima convicção do juiz, fiando-se em seu entendimento e em sua prudência, fornecendo-lhe todos os elementos que lhe permitam quer constatar (provas dire-tas), quer presumir (provas indiretas) a realidade dos fatos contestados. É verdade que o artigo 1353 do Código Civil pede que as presunções que forem apresentadas ao magistrado sejam "graves, precisas e concordes". Mas a Corte de Cassação julgou, tanto na França como na Bélgica (Civ. 2e. 24 jan. 1964, D. 1964, Somm. 101; 28 out. 1970, D. 1971. Somm. 15. - Cass. belga, 23 abr. 1914), que o artigo 1353 não se opõe a que os juízes formem sua convicção baseados num fato único, se este lhes parecer de natureza a fornecer a prova necessária. Basta, acrescenta a jurisprudência belga, que a presunção seja "de natureza a tranqüilizar a consciência do juiz e ditar-lhe sua decisão" .
Essas presunções, que chamaremos presunções do ho-mem, indicando com isso que, tendendo a estabelecer a ínti-ma convicção, elas são apreciadas livremente, em nada dife-rem do raciocínio comum que permite concluir de um fato conhecido um fato desconhecido. Deste ponto de vista, sejam quais forem as especificações fornecidas pelo art. 1353, elas nada têm de especificamente jurídico.
Inteiramente diferente é o caso das presunções legais. Estas não constituem elementos de prova, mas, pelo contrário, dispensam de qualquer prova os que delas se beneficiam (art. 1352, Cód. Civ.): elas impõem o ônus da prova àquele que deseja derrubá-las, quando essa prova em contrário é admitida.
Enquanto as presunções do homem concernem apenas aos fatos não qualificados juridicamente, as presunções legais júris tantum, que podem ser derrubadas por uma prova em contrário, determinam enquanto não forem derrubadas os efeitos jurídicos de dada situação. Seu papel é facilitar a tarefa do juiz ou do administrador público, daquele que se acha na obrigação de julgar ou decidir, ao passo que é muito difícil fornecer a prova dos fatos. A instituição de tais pre-sunções justifica-se essencialmente por preocupações de segurança jurídica.
Mas estabelecendo-se uma presunção legal assim em favor de uma das partes, concede-se-lhe uma vantagem, por vezes decisiva, em nome de outras considerações e outros valores que não a verdade objetiva ou a segurança jurídica. Assim é que a presunção de inocência protege as pessoas contra a calúnia e os abusos de poder, a presunção de pater-nidade protege a ordem das famílias e, especialmente, a criança concebida dentro do matrimônio, a presunção de legalidade da coisa decidida pela administração facilita o exercício da função pública.
A presunção legal júris tantum não impede que a verda-de seja trazida à luz, mas levando em conta outros valores que o sistema que a instituiu não quis desprezar. A técnica, que permite tomar em consideração tais valores, é que dá ao raciocínio jurídico sua especificidade . De fato, o juiz, obri-gado a julgar, deve acatar as presunções legais enquanto a prova em contrário não houver sido produzida, de modo contraditório, no próprio decorrer do processo, pois "ele não é autorizado a declarar um fato como consistente apenas pelo fato de lhe ter adquirido pessoalmente, fora do processo, o conhecimento positivo" .
23. Vimos que o juiz deve esforçar-se para estabelecer ou considerar como estabelecidos todos os fatos dos quais decorrerão as conseqüências jurídicas, em conformidade com a lei ou a convenção que, se não contém nenhuma cláusula imoral ou ilícita, constitui a lei das partes. Não há razão de demorar-se em tudo que é notório, em tudo que é objeto de conhecimento ou de experiência comum, em tudo que o juiz está disposto de antemão a admitir, em fatos não controver-tidos, bem como em tudo que as presunções legais conside-ram aceito, sem que o adversário procure fornecer prova em contrário.
Mas quais são os fatos com os quais cabe preocupar-se? Em princípio, os fatos são em número indefinido e o que deles pode ser dito comporta, ao lado de muitos elementos insignificantes, precisões que importam em dado contexto jurídico. Quando um estado de coisas acarreta conseqüências jurídicas, é da existência ou da inexistência desse estado de coisas que é preciso convencer o juiz ou, de modo mais geral, aquele que é incumbido de zelar pela aplicação da lei. Mas, para o fazer, é necessário subsumir os fatos sob os termos da lei ou da convenção, quer dizer, qualificá-los.
É necessário estabelecer, a esse respeito, uma distinção fundamental entre a simples descrição dos fatos e a qualifi-cação jurídica deles. Como o que interessa ao juiz é a apli-cação das regras jurídicas aos fatos qualificados, de modo que deles extraia as conseqüências previstas pelo direito em vigor, o exame prévio e a descrição dos fatos são orientados pela passagem mais ou menos imediata, mais ou menos difícil, dos fatos estabelecidos à sua qualificação. Assim como um físico ou um médico interessam-se por certos detalhes apenas porque confirmam ou infirmam certa teoria ou certa hipótese, assim também o juiz há de se interessar somente pelos detalhes que permitam ou impeçam a aplicação de uma regra de direito, que seria, em princípio, no sistema de direito continental, um texto de lei ou a cláusula de uma convenção estabelecida entre as partes.
Quando um texto legal está formulado na língua comum, principalmente quando contém elementos quantitativos determináveis por um procedimento incontestável, a passagem da descrição à qualificação poderia ser feita de imediato. Se um artigo do Código decide que se é maior com 18 anos completos, bastará conhecer a data de nascimento do interessado para, se ele não for estrangeiro, estabelecer imediatamente a qualificação. Mas, se se trata de estrangeiro, surge um problema: qual regra decidirá de sua maioridade? Nos direitos modernos, o estado e a capacidade das pessoas são determinados por sua lei nacional: teremos portanto de nos referir a ela para saber se se trata de um maior ou de um menor.
Se uma lei estabelece, entre as condições do casamento, uma idade mínima diferente para cada sexo, teremos de levar em conta o sexo de cada um dos nubentes para a aplicação da lei. Este conhecimento é, portanto, indispensável para a determinação dos fatos cuja qualificação acarretaria conseqüências previstas pelo direito em vigor.
24. Mas, muitas vezes, a passagem da descrição à qua-lificação não é óbvia, pois as noções sob as quais devem ser subsumidos os fatos podem ser mais ou menos vagas, mais ou menos imprecisas, e a qualificação dos fatos pode depen-der da determinação de um conceito, resultante de uma apre-ciação ou de uma definição prévia. "Se o roubo cometido à noite é punido com pena particularmente rigorosa e se está juridicamente estabelecido que pela palavra 'noite' entende- se para o período que vai de 1? de outubro a 31 de março, o tempo compreendido entre nove horas da noite e seis horas da manhã, então a questão de saber se o roubo foi cometido ou não à noite não será mais que uma questão de fato... É evidentemente uma questão de aplicação do direito saber se o termo 'noite' aplica-se somente ao tempo que decorre entre nove horas da noite e seis horas da manhã ou aplica-se mais ao tempo que separa o crepúsculo da aurora. Tendo o roubo sido cometido em novembro, entre 17 e 18 horas, não se po-de dizer com precisão se é uma questão de fato, pura e sim-plesmente, ou uma subsunção (resultado da qualificação) considerar, levando em conta o grau de obscuridade, que já era noite."
A primeira vista, as discussões deverão versar apenas sobre os limites (indecisos) da aplicação de uma noção qua-litativa: assim é que pareceria taxativamente aceito que um roubo cometido à meia-noite seria, sem discussão, um roubo cometido à noite. Para o professor Engisch esta seria apenas uma questão de fato . Mas mesmo sobre esse ponto poderão nascer divergências de interpretação se levarmos em conta não os termos da lei, mas a intenção do legislador. Teremos oportunidade de desenvolver ulteriormente este ponto.
Na Alemanha imperial, era proibido desfilar atrás de uma bandeira vermelha no dia primeiro de maio. Que acon-tece quando a bandeira, apreendida pela polícia, faz parte das provas de acusação e como tal é submetida ao exame do juiz relator do recurso? Pode este último, ao constatar de visu que a bandeira não é vermelha, mas lilás, declarar nula a decisão que lhe é apresentada, pelo motivo de o primeiro juiz ter-se enganado ao considerar vermelha a bandeira, quando de fato é de cor diferente?
Assim também, se uma placa avisar aos viajantes que lhes é proibido entrar na estação ferroviária acompanhado por um cão, deverá o encarregado permitir a entrada de um viajante que traz pela coleira um urso domesticado? Deve-se fazer prevalecer a letra ou o espírito do regulamento, ou seja, a intenção do legislador?
Esta última noção, que teremos de examinar mais a fun-do, convida-nos à prudência quando se trata de compreender e aplicar um texto legal, mesmo quando ele só contém, como condição de aplicação da lei, termos à primeira vista puramente descritivos.
O artigo 182 do Código Penal alemão pune com encar-ceramento até um ano "aquele que seduzir uma jovem irre-preensível de menos de 16 anos para manter com ela relações sexuais" . Quando se dirá de uma jovem que é "irrepreensí-vel"? Dir-se-á que não é irrepreensível porque foi violada, aos 10 anos, por um maníaco?
A aplicação do artigo 224 do Código Penal alemão exige que a vítima de um ferimento no rosto tenha sido "grave-mente desfigurada". A aplicação do artigo 370, 5?, do mesmo Código refere-se ao roubo de um "objeto de consumo pouco importante ou de valor insignificante". Pode-se qualificar deste modo o roubo de três garrafas de bordeauxT" O caso terá de ser apreciado pelo juiz.
Assim também, as noções de eqüidade, interesse públi-co, urgência, bons costumes apelam a critérios, a "padrões" que o legislador não definiu. Recorreu a essas noções em razão dessa indeterminação mesma, justamente para deixar ao juiz um poder de apreciação.
Quando o legislador quer diminuir o poder de aprecia-ção, acontece-lhe precisar os termos da lei, introduzindo, se possível, elementos quantitativos. Foi o que se deu, tanto na legislação belga quanto nas legislações estrangeiras, quando, diante do número crescente de acidentes de trânsito, houve necessidade de reprimir severamente a embriaguez ao volante .
A noção de embriaguez apareceu no direito francês na lei Roussel, de 23 de janeiro de 1873. Hoje está caracterizada nos artigos L. 65 e R. 4 do Código de Bebidas. Mas, em razão dos perigos da embriaguez ao volante, sua definição foi modificada e foi-lhe justaposta a noção de estado alcoólico. Dirigir neste estado é uma contravenção, se o sangue do motorista contém uma taxa de álcool puro igual ou superior a 0,8 gramas por mil. Se a taxa é igual ou superior a 1,2 gramas, a infração torna-se delito.
Como essa taxa pode ser medida por meio de testes extremamente simples (teste alcoólico), a liberdade de apre-ciação do juiz fica, no caso, reduzida ao mínimo. Embora ele a conserve, na medida em que não lhe é vedado o recurso a outros elementos de prova do estado alcoólico (Crim. 11 out. 1960, D. 1961. Somm. 15; 18 dez. 1962, D. 1963. Somm. 34; 24 jan. 1973, D. 1973.240, nota E. Robert) em que conserva inteira liberdade para estabelecer a embriaguez (Robert, nota prec.).
Vê-se, por esses poucos exemplos, como, mesmo es-tando estabelecidos os fatos, surgem problemas de qualifi-cação ligados à maior ou menor dificuldade de interpretar e aplicar a lei. Somente no limite é que o raciocínio do juiz se restringirá à aplicação do silogismo judiciário.
25. Na tradição da escola da exegese as noções de "cla-reza" e "interpretação" são antitéticas. De fato, diz-se inter-pretado cessat in claris, não cabe interpretar um texto claro. Mas quando se dirá de um texto que é claro? Poderíamos pretender que um texto é claro quando a cada um de seus termos corresponde uma única idéia e a construção gramati-cal da frase não dá margem a nenhuma ambigüidade, de modo que qualquer pessoa sensata deveria compreender o texto do mesmo modo?
De fato é possível que, em certos litígios, a interpreta-ção deste ou daquele texto não seja objeto de nenhuma con-trovérsia. Esse estado de coisas permite-nos, quando muito, constatar que as várias interpretações consideradas desse texto não apresentam nenhum interesse particular para as partes, pois elas não valorizam nenhuma delas. Concretamen-te, quando se trata de texto redigido em linguagem comum, dizer que o texto é claro é salientar o fato de que, no caso em pauta, não é discutido. Em vez de extrair da clareza de um texto a conseqüência de que, sensatamente, não é possível discordar sobre sua interpretação e seu alcance, é antes o contrário que podemos afirmar: como não constitui objeto de interpretações divergentes e sensatas, consideramo-lo claro.
Se um roubo foi cometido a uma hora da manhã, não vale a pena se perguntar se o termo "noite" cobre ou não a hora do crepúsculo, pois esta questão em nada mudará a aplicação da lei ao caso em questão. Somente um teórico ou um exegeta que se esforçasse para precisar o sentido do texto de forma que esclarecesse o juiz em todas as eventualidades em que pudesse ser aplicado, se interessaria por tais investigações. Mas, para cumprir sua tarefa, sua exegese deveria examinar todos os casos imagináveis. A impressão de clareza pode ser menos a expressão de uma boa compreensão que de uma falta de imaginação. Foi o que bem indicou o filósofo Locke, ao escrever: "Mais de um homem, que acreditara, à primeira leitura, ter compreendido uma passagem da Escritura ou uma cláusula do Código, perdeu-lhes totalmente a compreensão após ter consultado comentadores cujas elucidações aumentaram-lhe as dúvidas ou as originaram e mergulharam o texto na obscuridade."
Tomemos o artigo 617 do Código Civil que afirma, entre outras coisas, que o usufruto extingue-se pela morte natural do usufrutuário. A expressão "morte natural" é suficientemente clara e sua aplicação não levantava nenhum problema: um homem estava morto quando seu coração havia cessado de bater. Mas, com os recentes progressos técnicos que permitem fazer bater o coração de um indivíduo morto, eventualmente, graças ao transplante no corpo de outro indivíduo, os especialistas começaram a busca de uma definição mais adequada. Esta nova definição, que fornecerá o novo critério da morte natural, deverá ser a única a ser adotada de agora em diante?22 bis Ela será, de qualquer modo, diferente da que o legislador que votara a lei tinha em mente. Deverá ser mantida, neste caso, a tese de que o sentido da lei é o que exprime a vontade do legislador?
Mas qual é essa vontade? Não devemos esquecer que nos regimes parlamentares o legislador não é um ser único, mas um corpo constituído, que o mais das vezes comporta al-gumas centenas de membros, o mais das vezes divididos em duas assembléias, e cuja maioria vota segundo uma disciplina de partido, desinteressando-se da questão. Os membros mais competentes costumam ter pontos de vista diferentes sobre a matéria, que em geral se esforçam em conciliar mediante compromissos, freqüentemente obtidos graças a fórmulas vagas que permitem, por isso mesmo, interpretações divergentes. Mas mesmo que estivessem, como no caso da morte natural, de acordo há um século sobre o texto e sobre seu sentido, isso quer dizer que o juiz deve conformar-se a esta vontade presumida, sejam quais forem as conseqüên-cias?22"*' Era essa a idéia dos defensores da escola da exege-se. Mas pode-se efetivamente perguntar, a propósito disso, se o papel de juiz é idêntico ao do historiador do direito, que busca descobrir o que realmente se deu quando da discussão e votação de uma lei ou, pelo contrário, ele deve buscar a interpretação mais razoável, a que permitiria a "melhor" so-lução, a mais eqüitativa ao caso particular, de acordo com o direito vigente. E evidente que, recusando ao juiz o direito de contribuir para a elaboração da lei, a escola da exegese devia recusar esta última solução.
26. São conhecidas as concepções da Assembléia Na-cional que, ao criar o tribunal de cassação, quis fazer dele "um corpo de inspetores da justiça", de supervisores encarregados de velar pela correta observação da lei por parte das cortes e dos tribunais. A tal ponto que, em 19 de novembro de 1790, a Assembléia votou uma disposição segundo a qual: "Todo ano o tribunal de cassação terá de enviar à barra da assembléia do corpo legislativo uma deputação de seus oito membros para apresentar-lhe o estado das sentenças dadas, acompanhadas do resumo informativo de cada caso e do texto da lei que houver decidido a cassação."
"Vigilância, por conseguinte", escreve P. Foriers, "da lei, de seu conteúdo, de seu respeito pelo juiz de primeira instância, para salvaguardar a obra legislativa. Este encargo de 'protetor das leis, vigia e censor dos juizes', para retomar a expressão de Robespierre, é o que ainda hoje se arroga a nosso Tribunal mais elevado."
"E, em 1950", lembra o mesmo autor, "ainda era essa a concepção de Léon Cornil, procurador-geral da Corte de Cas-sação da Bélgica, que dizia: 'O tribunal de cassação fora criado para controlar todas as sentenças nas quais os juízes houvessem cometido algum excesso, indo além de julgar os litígios particulares em conformidade com as diretrizes gerais que a nação lhes havia dado através do órgão do poder le-gislativo. Tal é, ainda hoje, a missão da Corte de Cassação.''"
Ele apenas repetia as reflexões do advogado geral Sar- tini van de Kerckhove, num texto de 1937: "Sua missão é defender a obra do legislador contra a rebelião dos juízes, manter a unidade da legislação pela uniformização da juris-prudência."
A esse respeito, P. Foriers nota que "a Corte de Cassação é evidentemente um dos mais ativos fatores do desen-volvimento da jurisprudência e um fator de harmonização desta", mas para os altos magistrados, sua finalidade é "man-ter a unidade da legislação, não do direito".
Se é verdade que os juízes devem fazer o direito, este di-reito, no espírito da escola da exegese, era reduzido a uma entidade quase mística, a Lei, expressão da vontade nacional .
Segundo esta concepção o papel do juiz o obrigaria, sempre que isso fosse possível, e acreditava-se que o era na maioria dos casos, a dar sua sentença conforme à lei, sem ter de preocupar-se com o caráter justo, razoável ou aceitável da solução proposta. Servidor da lei, não tinha de buscar fora dela regras para guiá-lo: era o porta-voz da lei, a quem os exegetas deviam elucidar tanto quanto possível, para forne-cer-lhe soluções para todas as eventualidades.
Apenas nos casos excepcionais, de antinomias e lacunas, é que lhe atribuíam um papel mais ativo, o de eliminar as primeiras e preencher as segundas, mas mesmo nestes casos devia motivar suas decisões, amparando-se nos textos legais. Veremos de que modo, servindo-se da latitude que lhe ofereciam as antinomias e as lacunas, o poder judiciário pôde demolir, progressivamente, a teoria do direito elaborada no século XVIII e mantida penosamente até o último quarto do século XIX.
27. Diremos que estamos, num sistema de direito, diante de uma antinomia quando, em relação a um caso específico, existem no sistema duas diretrizes incompatíveis, às quais não se pode conformar-se simultaneamente, seja porque impõem duas obrigações em sentido oposto, seja porque uma proíbe o que a outra permite e não é possível se conformar a uma sem violar à outra. As antinomias, assim compreendidas, não dizem respeito ao verdadeiro ou ao falso, não afirmam simultaneamente duas proposições contraditórias, mas con-sistem em uma norma única ou várias normas cuja aplicação conduz, em dada situação, a diretrizes incompatíveis.
À primeira vista, a existência de antinomias parece di-ficilmente concebível. Com efeito, se uma lei permite o que a lei anterior proibia, ou vice-versa, não diremos que estamos diante de uma antinomia, mas admitiremos, mesmo que isto não esteja dito expressamente, que a lei anterior foi tacita- mente revogada. Assim também se um decreto ou um regu-lamento de execução não são conformes à lei, o artigo 107 da Constituição belga prescreve às cortes e tribunais que não o apliquem.
O problema é mais delicado quando um tribunal é con-vidado a declarar a inconstitucionalidade de uma lei, pois, em virtude da separação dos poderes, na maior parte dos Estados unitários, a Corte de Cassação, encarregada de zelar pelo respeito à lei por parte das cortes e tribunais, considerava- se incompetente e deixava o poder legislativo juiz na matéria. Mas a situação parece estar evoluindo. De fato, sob a influência do Tratado de Roma, que criou a Comunidade Eu-ropéia, os tribunais foram levados a considerar inválida uma lei que contradiz uma das disposições do tratado ao qual se concedeu primazia sobre a lei interna. Mas, já que os tribu-nais se consideram competentes para contestar a validade de uma lei contrária a uma regra de direito internacional con-vencional, diretamente aplicável na ordem jurídica interna, perguntamo-nos se uma evolução inevitável não vai conduzir os tribunais a declarar-se competentes em matéria de inconstitucionalidade das leis. Os julgados recentes da Corte de Cassação da Bélgica (3 de maio e 25 de junho de 1974) tendem para o controle judiciário da constitucionalidade das leis , mas é possível que, para evitar a politização dos tribu-nais, a melhor solução seja criar, como na França, um órgão especializado nessa matéria. Seja como for, se houver con-flito entre uma lei e a Constituição, um dos dois textos aca-bará por se impor, e não estaremos diante de uma antinomia.
O problema das antinomias só se põe com toda a acuida-de quando duas normas incompatíveis são igualmente válidas e não há regras gerais que permitam, nesse caso, atribuir a prioridade a uma ou à outra. Assim é que, em caso de con-flito entre uma lei geral e uma lei especial, consideraremos que o legislador quis, com a legislação especial, derrogar a regra geral, cujo campo de aplicação será com isso limitado: imediatamente será eliminada a antinomia.
Mas existirá uma antinomia resultante de um conflito, num caso particular, entre duas normas do mesmo nível, na ausência de uma regra que permita suprimi-la? O volume Les antinomies en droit, publicado pelo Centro Belga de Pesqui-sas em Lógica, foi consagrado a casos deste gênero .
Eis um exemplo concreto:
Em 29 de novembro de 1951, o Tribunal Correcional de Orléans teve de resolver uma antinomia a propósito de in-quéritos instaurados contra um "curandeiro" . Os curandeiros são numerosos na França, a tal ponto que ficaram sujeitos a um imposto sobre serviços nesta qualidade. Diante dos protestos da Ordem dos Médicos, que se insurgia contra esse modo de tolerar a violação da lei que pune o exercício ilegal da medicina, o ministro das Finanças respondeu que "a contribuição dos impostos sobre serviço é aplicável a qualquer pessoa que exerça por sua conta uma atividade com finalidade lucrativa, não cabendo investigar se tal profissão é exercida em contravenção às leis que a regulamentam". Se se trata de uma antinomia, o ministro das Finanças não se con-sidera encarregado de pôr-lhe fim.
"O curandeiro, chamado Roux, era processado por ter em Fleury-les-Aubrais, no correr de 1949 e desde uma data não precisada, tomado parte, habitualmente ou com orienta-ção contínua, mesmo em presença de um médico, do estabe-lecimento de um diagnóstico ou de um tratamento de doenças ou afecções cirúrgicas congênitas ou adquiridas, reais ou su-postas, com atos pessoais previstos em uma nomenclatura, sem ser titular de um diploma de doutor em medicina confe-rido pelo Estado e sem ser beneficiário das disposições es-peciais contempladas no parágrafo 1? dos artigos 1,2, 5 e 70 do Decreto de 24 de setembro de 1945.
Em outros termos, Roux era processado por exercício ilegal da medicina. Ele reconhecia os fatos, mas alegava em sua defesa que, em todos os casos, havia tratado e curado doentes em perigo de vida, pelos quais os médicos nada mais podiam fazer e, de fato, averiguou-se pelos debates que ele salvara de um desfecho fatal crianças atingidas de poliomielite e de meningite. A sentença reconheceu, aliás, que não se podia censurá-lo de nenhum ato de charlatanismo, nem de nenhum fato contrário à probidade e à honestidade; que em geral ele agira sem visar ao lucro e com generosidade e mesmo que obtivera um grande número de curas surpreendentes.
Estabelecidos estes fatos, deles resultava, segundo Roux, que ele se sabia dotado do poder de curar e tinha conse-qüentemente o direito e mesmo a obrigação de intervir, pois o Código Penal, em seu artigo 63, alínea 2, considera delito 'a recusa de assistência diante de um perigo qualquer', e pune com prisão de um mês a três anos e com multa de 240 a 10.000 francos ou somente com uma destas duas penas 'quem quer que se abstenha voluntariamente de prestar a uma pessoa em perigo a assistência que sem risco para si e para terceiros possa lhe oferecer, quer por sua ação pessoal, quer praticando um socorro'. O curandeiro fazia observar exatamente que a obrigação de assistência incide sobre todos e não apenas sobre aqueles a quem uma lei particular obriga a fornecer à vítima proteção ou socorro. Visto que ele se sabia dotado do poder de curar, devia pô-lo em prática se quisesse escapar aos rigores da lei!
Antinomia, por conseguinte: contradição evidente entre as regras que proíbem a uma pessoa não formada em medici-na imiscuir-se na prática da profissão médica e as disposições que obrigam qualquer pessoa a prestar assistência a um ter-ceiro em perigo, na medida em que possa fazê-lo sem expor a si própria ao perigo. Conflito entre a abstenção e a ação.
O tribunal de Orleans, posto diante desta antinomia, re-solveu-a a favor da obrigação de assistência: 'Consideran- do-se', diz o tribunal, 'que neste caso o réu sabia-se dotado do poder de curar, tinha o dever e, portanto, o direito de inter-vir; que, de fato, ele não poderia abster-se sem cometer delito previsto e punido pelo artigo 63 do Código Penal.' "27
Admitir-se-á facilmente que na grande maioria dos ca-sos, quando os tribunais lidam com charlatãos, não hesitam em condenar aqueles que são culpados de exercício ilegal da medicina, mas desta vez não foi assim.
mesmo os de propriedade de estrangeiros, são regidos pela lei francesa. As leis concernentes ao estado e à capacidade das pessoas regem os franceses, mesmo residentes no exterior."
A partir destas linhas, o uso, a doutrina e a jurisprudên-cia sistematizaram uma matéria difícil e delicada, em que pululam as antinomias.
Para elaborar regras gerais, que permitam encontrar a lei aplicável, as instituições e as regras de direito foram agru-padas em categorias específicas, chamadas geralmente, segundo a tradição, de "estatutos". Conhecem-se cinco: estatutos pessoal, real, local (locus regit actum), de autonomia da vontade e das leis de policia .
Não vamos apresentar, neste contexto, um curso de direito internacional privado29. Mas mostraremos como as questões do estatuto pessoal, concernentes ao estado e à capacidade das pessoas, podem levar a antinomias em maté-rias como, por exemplo, o casamento e o divórcio.
Para chegar à solução de um problema concreto nesta matéria é preciso:
1? determinar se a relação de direito foge ao direito interno, dada a existência de um elemento de estraneidade (tratando-se do casamento, constatar se um dos cônjuges é estrangeiro ou apátrida, ou se o casamento foi contraído no exterior);
2? analisar a instituição para classificá-la no estatuto próprio do direito internacional privado (o casamento per-tence ao "estatuto pessoal");
3? determinar, conforme o fator de vinculação próprio do estatuto escolhido, a lei do direito interno aplicável (para o casamento, é a lei nacional dos cônjuges);
4? descobrir, na lei interna aplicável, as disposições que fornecem, à questão proposta, a solução concreta buscada;
5? aplicar tais disposições ao caso específico.
Compreende-se facilmente que em qualquer fase possam surgir antinomias. Principalmente quando se trata de institu-tos, como o casamento ou a adoção, quando se referem a duas pessoas, o marido e a mulher, o adotante e o adotado, de nacionalidades diferentes. As antinomias, nessa matéria, são tão freqüentes que raras são as obras de doutrina que conseguem examinar todos os casos que podem apresentar-se.
O caso clássico é o do divórcio entre cônjuges de nacio-nalidades diferentes, pois o mais das vezes as condições que autorizam o divórcio variam de um sistema para outro, che-gando até a uma completa oposição, quando o sistema de um dos cônjuges o proíbe enquanto o sistema do outro o autoriza: até pouco tempo atrás este problema se fazia sentir agudamente quando um dos cônjuges era italiano e o outro belga ou francês.
Diversas jurisdições encarregadas de um caso de divór-cio de dois cônjuges de nacionalidades diferentes adotaram, sucessiva ou simultaneamente, seguindo as construções dou-trinais, as mais variadas soluções:
a)            cumulação das duas leis e aplicação da lei mais res-tritiva;
b)           aplicação da lei nacional do demandante;
c)            aplicação da lei nacional do marido;
d)           aplicação da lei nacional da mulher;
e)           aplicação da lei do domicílio;
f)            aplicação da lei do lugar do casamento;
g)            aplicação da lei do cônjuge inocente ;
Poder-se-ia acrescentar ainda a lei do tribunal, lex fori.
Na Bélgica, esse problema é ilustrado pelo caso Rossi, em que o marido era italiano enquanto sua mulher conservara a nacionalidade belga.
Após um acórdão da Corte de Apelação de Bruxelas em reunião plenária, de 4 de maio de 1954 (Journ. Trib., 1954, 458), que concedia o divórcio, em consideração ao interesse preponderante da vítima (aplicando a lei belga, a do cônjuge demandante), a Corte de Cassação que havia cassado o aresto anterior da Corte de Apelação de Liège, adotando, em seu acórdão de 16 de maio de 1952, a teoria da cumulação, havia mais uma vez, com seu acórdão, em reunião plenária de 16 de fevereiro de 1955 {Journ. Trib., 1955, 249) recusado a concessão do divórcio à esposa belga por razões lógicas, pois o divórcio é excluído pela lei italiana: "considerando que não se concebe que o vínculo matrimonial seja rompido em relação a um dos cônjuges e subsista em relação ao outro".
A Corte de Cassação acrescentara em seus considerandos que a solução que concedia o divórcio era inconcebível no estado atual da legislação. Este apelo ao legislador foi ouvido, pois este editou a lei de 27 de junho de 1960, cujo artigo primeiro prevê que "no caso de casamento entre es-trangeiros, a admissibilidade do divórcio é regida pela lei belga, a menos que a lei nacional do cônjuge demandante a isto se oponha". O artigo segundo prevê ainda que no caso de casamento de cônjuges de nacionalidades diferentes, mas dos quais um seja belga, a admissibilidade do divórcio é regida pela lei belga; dependendo da mesma lei a determinação das causas de divórcio31.
Bastou portanto uma decisão do legislador para que aquilo que parecia inconcebível para a Corte de Cassação, por ferir a lógica, se tornasse uma disposição que se impunha às Cortes e aos tribunais. Se a Câmara dos Lordes não pode transformar um homem em mulher, o Parlamento belga seria capaz de transformar o que é inconcebível e ilógico numa disposição que ele impõe aos juízes?
Na verdade a solução imposta pelo legislador belga podia criar dificuldades, sobretudo para o cônjuge italiano, divorciado na Bélgica, mas cujo divórcio não era reconhecido em seu próprio país: era uma situação desagradável, a qual o legislador italiano acaba de sanar, admitindo como causa de divórcio na Itália o fato de o divórcio ter sido concedido por um tribunal estrangeiro.
Este exemplo nos mostra claramente que, se certos ju-ristas contestam a existência de antinomias em direito inter-no , sua existência se impõe assim que se apresenta um con-flito de leis, quando o juiz deve aplicar simultaneamente as regras de direito extraídas de sistemas diferentes.
Notemos, a propósito disso, que a Corte de Cassação da Bélgica considerava-se como que atada pelo estado da legis-lação, ao passo que só o era pela construção doutrinal que adotara, a qual, em caso de conflito de leis, preconizava a solução mais restritiva.
Mais tarde, abandonando as concepções da escola da exegese, admitindo outras fontes de direito além da lei posi-tiva, a doutrina, seguida pela jurisprudência, se servira da técnica da antinomia para afastar a aplicação de textos legais a favor de soluções mais eqüitativas ou mais razoáveis.
29. O artigo 4 do Código de Napoleão considera culpado de denegação de justiça o juiz que se recusar a julgar sob pretexto do silêncio da lei. Por isso mesmo, se o juiz percebe uma lacuna na lei, é obrigado a preenchê-la, mas sua decisão deverá, ainda assim, ser motivada no direito.
A percepção de uma lacuna na lei significa claramente que, para o juiz, a solução não poderá ser obtida por dedu-ção, a partir do texto legal. Se ele tiver, não obstante, de preencher a lacuna, motivando ao mesmo tempo sua decisão, só poderá fazê-lo recorrendo a formas de raciocínio diferentes das da lógica formal.
O problema das lacunas nasceu com o princípio da separação dos poderes que impõe ao juiz a obrigação de apli-car um direito preexistente e que se supõe ser-lhe conhecido. Antes da Revolução Francesa, este problema não existia, pois o juiz devia encontrar a regra aplicável: na ausência de uma regra expressa, podia procurar outras fontes do direito além da lei positiva e, se as fontes não fossem concordes, importava saber em que ordem deveriam ser classificadas essas fontes de direito supletivo. Como não era proibido aos juízes formularem regras por ocasião de litígios ("as senten-ças de regulamentação") e não tinham de motivar suas sen-tenças de forma expressa, compreende-se que o problema das lacunas não tenha surgido antes do século XIX .
A obrigação de preencher as lacunas da lei concede, ipso facto, ao juiz a faculdade de elaborar normas. Se ele não é, como na common law, necessariamente criador de regras de direito, pois suas decisões não constituem precedentes que outros juízes são obrigados a seguir, mesmo assim, ele elabora regras de decisão que lhe fornecerão a solução do problema que lhe é submetido. Como evitar que o juiz exerça esse poder de modo arbitrário, onde encontrar garantias de imparcialidade?
A solução que prevaleceu no direito penal e também no direito fiscal consiste em admitir que, na ausência de uma regra expressa, se aceitará, nestes dois ramos do direito, um princípio geral de liberdade: nullum crimen, nullapoena sine lege: é necessário uma regra prévia para motivar tanto uma pena quanto uma imposição fiscal, mas esta regra não deverá, necessariamente, ser interpretada de modo restritivo (o juiz penal assimila os barcos a motor diesel aos barcos a vapor e um cheque de viagem a um cheque comum) .
Mas esta solução é inaplicável em direito civil ou co-mercial. Se um contrato, que constitui a lei das partes, prevê juros de mora, mas não fixa a taxa, dever-se-á indeferir o pedido do autor, a pretexto de que o contrato não determina com precisão as obrigações do réu? Semelhante interpretação seria não apenas iníqua, mas claramente contrária à vontade das partes.
Como evitar, neste caso, a arbitrariedade do juiz? Na ausência de uma regra expressa, o juiz deverá inspirar-se no espírito do direito, ou seja, nos valores e nas técnicas que outros textos protegem ou utilizam.
Notemos, a esse respeito, que certos sistemas, tal como o direito canónico, admitem que há uma lacuna não só no caso do silêncio, mas também no da obscuridade da lei. Conforme à máxima "lex dúbia, lex nulla", ele afirmará a existência de uma lacuna assim que o recurso à interpretação se mostre indispensável .
Mas parece abusivo assimilar o emprego da interpretação ao preenchimento de uma lacuna. Pois não só parece in-concebível admitir um princípio geral de liberdade assim que há razões de recorrer à interpretação, mas todos os sistemas que, em caso de lacuna, remetem a um direito supletivo são obrigados a distinguir entre o silêncio da lei e sua obscurida-de, que dá lugar à interpretação. Assim é que o direito israe-lense prescreve que, para preencher lacunas da lei, se faça re-ferência à commom law e às doutrinas de eqüidade em vigor na Inglaterra, mas o juiz só deverá recorrer a essas fontes su-pletivas depois que os esforços de interpretação (da Mejelle muçulmana, por exemplo) se tenham revelado infrutíferos .
Notemos entretanto que a doutrina pode sofrer flutua-ções na maneira de qualificar certas técnicas de raciocínio jurídico: para os juristas suíços o raciocínio por analogia e o recurso à ratio legis prendem-se à interpretação, enquanto o recurso aos princípios gerais do direito pertence à técnica do preenchimento de lacunas; para os juristas alemães, interpre- ta-se recorrendo a um princípio geral do direito e preenche-se uma lacuna recorrendo a um raciocínio por analogia .
Seja como for, é impossível admitir que o princípio geral de liberdade forneça a única solução do problema das lacunas. Basta constatar, com efeito, que o problema das an-tinomias no direito existe apenas nos casos em que não se possui regra geral que permita resolvê-las, ou seja, quando há uma lacuna na lei. Ora, não se concebe que, neste caso, nenhuma das duas regras opostas seja aplicável: cumpre po-der decidir, por exemplo, concedendo-se ou não o divórcio, e o princípio geral de liberdade não fornece nenhuma res-posta à questão. Há mais, porém. No direito administrativo, a existência de uma lacuna não dá nenhuma liberdade de ação à administração pública: pelo contrário, limita a liberdade de ação do poder administrativo, mesmo quando este deveria agir para desempenhar sua missão .
Resulta, de tudo que acabamos de dizer, que não se po-de, pura e simplesmente, identificar a existência de lacunas com o fato de um sistema formal ser incompleto, como de-sejariam certos formalistas . Um sistema formal é incom-pleto quando não se pode deduzir dos axiomas do sistema, mediante regras de dedução aceitas, uma proposição, que se pode formular nesse sistema, nem sua negação. Mas só fala-remos de lacunas em direito quando tentativas de interpretar a lei não chegaram a resultado satisfatório. Ora, as controvér-sias jurídicas concretas demonstram que é freqüente, a este respeito, constatar um desacordo entre os intérpretes, o que acarreta, conseqüentemente, um desacordo sobre a existência ou sobre a própria inexistência da lacuna.
30. Tradicionalmente distinguem-se três espécies de la-cunas: as lacunas intra legem, praeter ou contra legem.
A lacuna intra legem é uma lacuna resultante de uma omissão do legislador, quando, por exemplo, a lei prescreve a elaboração de dispositivos complementares que não foram promulgados. Assim, como nos assinala o professor Ziem- binski , "conforme o artigo 2, alínea 2, da Constituição da República Popular da Polônia, de 22 de julho de 1952, os deputados da Dieta (Seym) são destituíveis pelos eleitores que os elegeram por sufrágio universal. Mas nenhuma lei concernente à destituição dos deputados da Dieta foi insti-tuída desde 1952; a destituição de um deputado é, conseqüen-temente, impossível. A Constituição menciona o instituto da cassação de um deputado (isto é, ordena que não se respeite o mandato de um deputado, que foi cassado pelos eleitores), mas, por falta de regras de organização que regulamentem o procedimento de tal ato, a cassação se torna irrealizável. É um típico exemplo de lacuna de regulamentação".
Mas semelhantes situações são relativamente raras. Na maioria dos casos as lacunas são criadas pelos intérpretes que, por uma ou outra razão, pretendem que certa área deveria ser regida por uma disposição normativa, quando não o é expressamente, que afirmam a existência de uma lacuna axiológica, ou seja, de uma lacunapraeter legem. Para outros intérpretes, entretanto, o sistema não é lacunar, quer porque estendam por analogia o alcance da lei, quer porque preten-dam que a área em questão não depende de nenhuma regu-lamentação, por pertencer ao campo do que escapa à esfera do direito, daquilo a que o professor Carbonnier qualificou de não-direito4'.
Finalmente, os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de encontro às disposições expressas da lei.
Um excelente exemplo nos é fornecido por um acórdão da Corte de Cassação da Bélgica de 15 de julho de 1907 (Pas., 1907.1.334), a propósito de um belga que "cometera na França um atentado ao pudor, sem violência nem ameaça, contra a pessoa de uma francesa de 13 anos de idade. Fato, na época, não punível na França. A Corte de Cassação decidiu que o réu não podia ser condenado em razão de não poder a lei belga conceder aos estrangeiros, no território destes, uma proteção que não encontram em sua lei nacional. Ora, incontestavelmente os textos obrigavam o juiz belga a condenar esse belga, processado na Bélgica. Os artigos 7, 8 e 14 da lei de 17 de abril de 1818, na redação da época, eram formais: o réu deveria ser julgado conforme as disposições das leis belgas. A Corte de Cassação decidiu de outra forma. Basean- do-se na busca do fundamento do direito penal: segundo a Corte, a proteção das vítimas. A solução teria sido diferente se a Corte Suprema houvesse adotado a idéia de um direito penal exemplar, ou de defesa social, ou mesmo simplesmente retributivo" .
A Corte de Cassação restringe o alcance de um texto legal, alegando a finalidade da lei penal e invocando um prin-cípio geral que não se encontra em nenhum texto de direito positivo. Assim que não se aplica a lei penal porque esse caso não teria sido previsto por ela, encontramo-nos diante de uma lacuna, cujo efeito será inocentar o réu. Mas quem não vê que, para os adversários do sistema adotado pela Corte de Cassação e, de qualquer modo, para os partidários da escola da exegese, a Corte simplesmente violou a lei, criando artificialmente uma lacuna contra legem?
Vemos assim como a própria noção de lacuna, que, para os partidários da interpretação estrita da lei, deveria limitar-se às lacunas intra legem, às lacunas de construção, foi ampliada pelos defensores de outra concepção de interpretação legal, interpretação teleológica, funcional e sociológica. Eles utilizarão as técnicas de qualificação e de interpretação, as antinomias e as lacunas, na doutrina e na jurisprudência, para ampliar o papel do juiz e emancipá-lo progressivamente da tutela do legislador.

(PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 29-68)

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