sexta-feira, 1 de abril de 2011

STJ: Filtros processuais não impedem início de ações, diz ministro Carvalhido

O minstro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Hamilton Carvalhido concedeu entrevista à revista Consultor Jurídico, publicada nesta segunda-feira (28). Nela, o magistrado fala sobre a Lei da Ficha Limpa, reforma do Código Eleitoral e a necessidade de enfrentamento das demandas de massa. Confira a íntegra da entrevista feita por Alessandro Cristo, editor da revista.

Entre a função de comandar os programas de organização dos tribunais brasileiros e a de julgar as eleições presidenciais de 2010, o ministro Hamilton Carvalhido escolheu a segunda. Era sua a prerrogativa de ser corregedor nacional de Justiça, mas ele optou pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E não se arrepende. Foi dele a incumbência de julgar primeiro os argumentos sobre a validade da Lei da Ficha Limpa já em 2010, ano em que foi sancionada.

Respondendo a uma consulta no TSE, o ministro considerou que a norma não alterou o processo eleitoral, e por isso não precisaria esperar um ano para começar a valer. Na última quarta-feira (23), Carvalhido viu sua posição ficar vencida no Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou a norma inválida para o ano de seu nascimento. O resultado apertadíssimo foi de seis votos a cinco e dependia apenas da nomeação do ministro Luiz Fux para a Corte.

Prestes a se aposentar — o que acontecerá compulsoriamente em maio, depois de quase 50 anos dedicados à carreira jurídica —, Carvalhido apenas começou a dar sua contribuição na área eleitoral. Ele faz parte da comissão que hoje avalia a reforma do Código Eleitoral, grupo organizado pelo Senado em julho do ano passado e coordenado pelo ministro Dias Toffoli do STF. Um dos temas principais a serem atacados, segundo ele, é a forma de financiamento de campanhas eleitorais, que em sua opinião não deveria mais ser mais feito por pessoas jurídicas, que afinal não votam. "Seria melhor limitarmos as doações às feitas por pessoas físicas", diz.

Carvalhido foi o primeiro corregedor da Justiça Federal, cargo que ocupou entre 2008 e 2009, tempo em que implantou a Corregedoria. Simultaneamente, foi presidente da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, órgão responsável pelo alinhamento da jurisprudência esparsa dos Juizados Especiais Federais de todo o país.

Experimentado no enfrentamento da demanda em massa de processos, o ministro alerta que os filtros criados no STJ e no STF para diminuir a subida de recursos, como a Lei de Recursos Repetitivos e a Repercussão Geral, não têm a função de estancar novas ações. "Ainda que agilizem as soluções, esses instrumentos não podem ser vistos como algo que neutralize o caudal de processos, e sim como consolidação de um entendimento que deve regrar as relações da vida social."

Ministro do STJ desde 1999, oriundo do quinto constitucional do Ministério Público, o carioca Hamilton Carvalhido passou por duas Seções da Corte. Professor de Direito Penal, começou na Terceira Seção, que julga apenas recursos criminais. Nesse período, coordenou a comissão organizada pelo Senado para a reforma do Código de Processo Penal. Em 2008, mudou para a Primeira Seção, de Direito Público. Foi autor de uma das primeiras decisões que admitiu a aplicação da Lei Geral de Greve, reservada aos empregados da iniciativa privada, às paralisações dos servidores públicos. A falta de uma regra específica para os funcionários estatutários levou o STF a tomar a mesma medida, e declarar válido o uso da norma para estes casos.

O ministro recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete no STJ para uma entrevista. Os principais trechos da conversa, que aconteceu antes da decisão do STF sobre a Lei da Ficha Limpa, o leitor poderá conferir abaixo.

ConJur — Quando o ministro saiu do Conselho da Justiça Federal, teve a opção de ir para o Conselho Nacional de Justiça como corregedor. Por que preferiu o TSE?
Hamilton Carvalhido — Eu já tinha dado a minha contribuição como corregedor da Justiça Federal. Na carreira da gente, não se pode deixar de passar por um tribunal superior como o TSE. São 20 anos de eleições. No Conselho da Justiça Federal, eu fui o primeiro corregedor, implantei a Corregedoria. Nesse período, acumulei a Presidência da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Terminado o mandato lá, eu tinha a opção, devido ao critério de antiguidade no STJ, de ser corregedor nacional de Justiça ou ir para o Tribunal Superior Eleitoral como titular. Optei pelo TSE, e a ministra Eliana Calmon foi para o CNJ. Para a minha carreira, o TSE veio na hora exata. É o lugar certo para o magistrado quando ele adquire um determinado grau de experiência, de vivência.

ConJur — O que significou entrar no TSE em um ano peculiar como esse?
Hamilton Carvalhido — Foi importante não só pela eleição, mas também pela votação da Lei da Ficha Limpa. Fui eu quem respondeu à primeira consulta sobre a aplicabilidade da lei. Foi o que mais me entusiasmou. Minha decisão foi assentada em fundamento jurídico, e não em fundamento estranho ao Direito. Muito embora a gente fique muito contente quando o Direito, como é de sua natureza, se encontra com aquilo que a sociedade reclama. A regra deve ser sempre essa: o Direito deve responder a um anseio social.

ConJur — Experimentar uma nova área não é exatamente excepcional na sua vida. Depois de dedicar a carreira ao Direito Penal, o ministro trocou, em 2008, a Terceira Seção pela Primeira, que julga Direito Público. Como foi a adaptação?
Hamilton Carvalhido — Foi algo muito maduro para minha vida profissional. Apesar de ser professor de Direito Penal, gosto de Direito Constitucional, Administrativo e Tributário. Quando assumi o gabinete, tinha aproximadamente 2,8 mil processos. Hoje tenho 300. É um dos menores. Há até bem pouco tempo trabalhei com uma média de cento e poucos processos.

ConJur — Ao decidir que a Lei da Ficha Limpa vale já no ano de sua sanção, o TSE definiu o conceito de processo eleitoral. O que pode ser mudado sem esbarrar no princípio da anterioridade?
Hamilton Carvalhido — O artigo 16 da Constituição Federal não é uma regra sobre irretroatividade. O que ele diz é que mudanças devem ser diferidas para um ano depois da edição da lei, para não haver surpresa. Não se pode mudar a regra procedimental no meio do jogo. O princípio da anterioridade se refere apenas ao aspecto dinâmico das eleições, em relação a fases, prazos e documentos. Isso não pode ser mudado. Mas o que trata de direito material, como o de ser eleito, não tem nada a ver com processo eleitoral. Se amanhã dissermos que os daltônicos não podem dirigir devido ao seu problema, a regra não pode começar a valer só para os que nascerem depois da lei ou para os que forem tirar a licença dali por diante. Ninguém vai dizer que quem já dirigia tem direito adquirido, porque aquela limitação foi considerada de risco para a coletividade.

ConJur — E como fica a irretroatividade da lei?
Hamilton Carvalhido — Para o jurista Pontes de Miranda, que explica com clareza absoluta, uma lei tem o efeito retroativo quando invade o passado e modifica efeitos já produzidos pela lei anterior, desconstitui ou apaga o que já foi feito. Aplicação imediata é outra coisa. A inelegibilidade é averiguada no momento do registro do candidato. O que se discutiu foi se uma condenação criminal não transitada em julgado pode produzir efeitos. Algumas pessoas dizem que, enquanto não transitar em julgado, não pode produzir efeito nenhum no universo jurídico das pessoas, não só no penal. Essa foi uma amplitude maior que se deu à presunção de não culpabilidade. Mas é preciso ponderar princípios constitucionais, como o da probidade. Existe a presunção de não culpabilidade e existe um mínimo de probidade indispensável ao exercício do mandato. O que o legislador fez foi ponderar dois princípios constitucionais e dar prevalência para um. O condenado por decisão colegiada ainda pode pedir a suspensão dessa inelegibilidade. Se a condenação tiver sido de um Tribunal de Justiça, ele pode requerer ao STJ. Se for do STJ, pode requerer ao Supremo e concorrer.

ConJur — Mas se o pedido não for aceito e tempos depois ele for absolvido, não terá o direito de volta.
Hamilton Carvalhido — Certamente que não. A lei diz que esse direito preclui.

ConJur — Essa é a interpretação segundo a qual a inelegibilidade não é sanção nem pena?
Hamilton Carvalhido — A inelegibilidade é apenas um efeito que a lei atribui a um fato. Para a lei, esse fato é incompatível com o exercício do mandato político. É um mínimo de probidade. Como exemplo, cito as condenações por crimes contra o patrimônio público.

ConJur — Para a cassação do mandato, basta que exista a conduta vedada ou é preciso que o desvio cometido tenha influenciado no resultado das eleições?
Hamilton Carvalhido — Em princípio, a conduta já é razão suficiente, mas vai depender da natureza dela. Compra de voto, por exemplo, é grave por natureza. No TSE atentamos muito para o grau de ofensividade, para a potencialidade lesiva. Pode haver situações sem relevância, mas de todas as que já julguei, nenhuma era caso de não cassar.

ConJur — Um prefeito que tenha cumprido dois mandados consecutivos, pode concorrer ao mesmo cargo em um município próximo?
Hamilton Carvalhido — O ministro Eros Grau [do STF, aposentado] decidiu sobre isso. Há fraude à Constituição pela possibilidade de reeleição. Não há óbice algum para que se concorra ao mesmo cargo. Todavia, se você se transforma em um prefeito profissional, itinerante, apenas trocando de domicílio, isso é fraude à Constituição. Você vai ser o único prefeito a vida inteira, o que elimina a disputa democrática, a igualdade. Mas a questão está em aberto ainda. Tem decisão, mas há quem pense o contrário.

ConJur — É razoável, para se evitar a compra de votos, proibir os saques em bancos na véspera da eleição?
Hamilton Carvalhido — Não se justifica. É o mesmo que, para evitar que eleitores sejam transportados, proibir que se dirija.

ConJur — É possível bloquear bens de quem é acusado de improbidade?
Hamilton Carvalhido — Sim. Essas medidas cautelares são utilíssimas, e quanto mais as desenvolvermos, melhor resposta o Estado dará à improbidade. Mas só cabe invadir essa dimensão do privado quando se tem enriquecimento ilícito. Uma violação de princípio, como contratações irregulares, pode ser culposa. Não se pode sair arbitrária e autoritariamente bloqueando bens. Toda invasão de garantias só pode ser permitida debaixo de decisões absolutamente fundamentadas quanto à sua necessidade.

ConJur — O candidato que apresenta as contas de campanha, mas as tem rejeitadas, pode ter o registro indeferido?
Hamilton Carvalhido — A lei diz que ele precisa apenas apresentá-las. As consequências da rejeição ensejam outras providências. Eu faço parte da comissão de reforma do Código Eleitoral, e esse é um tema que vai precisar de ajustes. Vai envolver a reforma política também, porque a gente continua perguntando se é possível conviver com essa possibilidade de financiamento de pessoa jurídica sem limite. Seria melhor limitar as doações às feitas por pessoas físicas.

ConJur — Com tantos questionamentos feitos pelos partidos, a Justiça Eleitoral virou uma espécie de tapetão das eleições?
Hamilton Carvalhido — Acho que não. O efeito pedagógico é importante.

ConJur — Mesmo nos casos de interferências nos programas eleitorais gratuitos?
Hamilton Carvalhido — Disso eu não gosto, porque acaba soando como censura. Não se pode mais interferir. O melhor lugar para a resposta é no espaço de que cada um dispõe. Se houver ofensa que se submete à lei penal, ela deve ir para a Justiça comum. Mas, nos casos de conduta vedada, propaganda antecipada ou compra de votos, é preciso ter mão forte.

ConJur — A que se deve o crescimento da demanda no Judiciário, de forma geral?
Hamilton Carvalhido — Por que existe a repercussão geral no Supremo, e o recurso representativo de controvérsia no STJ? Historicamente, a mudança política no país influiu grandemente. Quando se disciplina juridicamente políticas públicas em uma Constituição, elas ingressam no mundo do Direito na direção do Judiciário. Se você cria direito à habitação, à saúde, você transforma isso em questão de processo. De outro lado, o acesso à Justiça também foi ampliado. A Defensoria, ainda que lentamente, se expande. Em um país como o nosso, essa garantia de acesso à Justiça deve ser o primeiro direito assegurado. Não basta criar instrumentos processuais, é preciso oferecer uma sólida assistência judiciária. O aumento do número de advogados é outro fator. Eu pertenço a uma geração em que, de uma turma de faculdade, menos que 5% conseguia se firmar na advocacia. A maior parte ia para outras carreiras em que ser formado em Direito era fundamental, como a de contador ou de gerente de banco.

ConJur — A Justiça também se desenvolveu devido à maior procura?
Hamilton Carvalhido — Evoluímos do processo costurado com barbante para os arquivos digitais. Ainda temos de chegar ao processo eletrônico de fato, não apenas digitalizado. São vantagens que a gente não conseguiu implantar inteiramente ainda. Mas a jurisdição de massa, com uma produção impensável, de mil, duas mil decisões por mês, aliada ao processo eletrônico, reclama cuidado para que o processo não deixe de ser o que ele é. A jurisdição de massa automatiza. Em uma determinada questão, firma-se um entendimento, sumula-se a matéria, e é evidente que todos os processos que reproduzam aquele assunto serão decididos da mesma forma. Mas instrumentos como a repercussão geral não vão fazer cessar a torrente de processos, e sim estabelecer o que o Direito decide ou deve decidir naquela questão, durante aquele período histórico, de forma que essa decisão se converta em norma social que iniba a reprodução da demanda. Ainda que agilizem as soluções, esses instrumentos não podem ser vistos como algo que neutralize o caudal de processos, e sim como consolidação de um entendimento que deve regrar as relações da vida social. Às vezes, perdemos um pouco essa perspectiva e começamos a encarar as coisas como se fossem meras soluções práticas.

ConJur — Acelerar a produção não permite atender mais gente?
Hamilton Carvalhido — O volume de processos, em princípio, obriga a uma produção mais intensa, mais rápida. Mas esse não é o meu estilo. Isso não quer dizer que o processo deve demorar o tempo que demorar, porque as decisões têm que vir em tempo socialmente útil para as pessoas. Por outro lado, nada justifica a diminuição da qualidade do serviço.

ConJur — Que postura deve ter o Estado como maior cliente do Judiciário?
Hamilton Carvalhido — Há um reduto no processo administrativo que continua fechado à redemocratização, em relação ao direito de defesa. Discute-se, e isso é absolutamente novo, se o Judiciário tem poder e dever de interferir no mérito do ato administrativo, mensurando, por exemplo, a ponderação e a razoabilidade de uma sanção administrativa. Antigamente se dizia que no mérito administrativo não se pode interferir. Agora, o mérito administrativo está aberto ao Judiciário pelo caminho da Constituição. A resposta sancionatória pode ser ponderada, e já estamos intervindo.

ConJur — Isso inclui também ponderar multas aplicadas pelos órgãos administrativos?
Hamilton Carvalhido — Não tivemos esse caso ainda. A grande pergunta é: será legal e constitucional que as multas correspondam ao próprio valor do débito? Será que a multa não deve ter um limite? Essa é uma matéria que precisa ser regulamentada. A multa acaba sendo uma fonte orçamentária poderosíssima.

ConJur — Como mudar o quadro?
Hamilton Carvalhido — A redemocratização do país está entrando na dimensão interna do Direito Público, na administração. O poder público continua enxergando o cidadão como inferior, e essa visão precisa ser reconstruída. É absolutamente contrário à ética pública o Estado se defender em uma ação à moda do particular, dizendo que o servidor público não provou que merece a promoção, por exemplo. É a administração a depositária dos assentamentos funcionais desse servidor. É o mínimo do dever ético do Estado não se comportar como um particular nas reivindicações feitas diante dele. Tem todo o direito de se defender, mas tem que fazer isso eticamente.

ConJur — Devido ao volume da demanda, seria interessante para o STJ ter, além dos julgamentos sobre recursos repetitivos, também um filtro de relevância de matéria, como o da repercussão geral?
Hamilton Carvalhido — Não há necessidade de se ficar corrigindo no meio do caminho. O senador Demóstenes [Torres (DEM-GO), presidente da Comissão Provisória de Análise do Código de Processo Civil] chegou a pensar em uma espécie de súmula proibitiva, que impediria o início do processo sobre matéria já pacificada. O ideal é que nessas matérias que não podem nem vão prosperar o caminho seja encurtado, senão não adianta. Esse é o princípio da súmula vinculante.

ConJur — Os filtros são a solução para se reduzir, a longo prazo, a quantidade de processos?
Hamilton Carvalhido — Tudo isso é bom, mas hoje estamos partindo para soluções alternativas como Justiça restaurativa, mediação etc., que tiram essa espécie de monopólio do contencioso do Judiciário. São formas de solução em que a própria sociedade, de maneira mais genuína, mais próxima, é legítima para discutir as questões e procurar soluções que harmonizem as pessoas. O processo tem dificuldade em relação a isso. Por exemplo: será razoável restringir o número de recursos aos tribunais e permitir que se use o Habeas Corpus para qualquer coisa? O número de pedidos de Habeas Corpus aumentou desarrazoadamente. Muitos não têm nada a ver com prisão. Segundo a Constituição, o Habeas Corpus é um remédio para fazer cessar ou impedir a prisão ilegal. Só para isso. Mas o que se vê é a vulgarização do remédio constitucional.

ConJur — A parte pode usar seu direito disponível para desistir do recurso mesmo que ele já tenha sido pautado como representativo de controvérsia?
Hamilton Carvalhido — Isso eu não tenho permitido, porque é uma forma de burlar, de não permitir a uniformização de um entendimento. É um recurso representativo de controvérsia, vinculado ao rito por um despacho.

ConJur — A regra vale para recursos não destacados como repetitivos? Há como evitar que as partes manipulem a relatoria de processos desistindo de recursos já pautados?
Hamilton Carvalhido — Eu não vejo razão para impedir o exercício de direitos disponíveis. As coisas que caminham por uma hipertrofia do juiz, do Poder Judiciário, ganham um fortalecimento desmesurado, que eu não recebo bem. Influir na disponibilidade das partes em obséquio de quê? O argumento da manipulação de relatoria nem cabe na lógica do razoável. O que é manipular? É o relator ser desonesto? Em uma lógica do razoável, é impensável qualquer coisa feita para neutralizar o defeito do homem. No caso de desvios dentro do Judiciário, abre-se processo institucional e manda-se o magistrado embora. Agora, qualquer fortalecimento do juiz além do razoável em um Estado Democrático de Direito é danoso, perigoso. Juiz tem que ser juiz, não tutor do interesse social na agilidade do processo. Essas tutorias têm um nome, e eu não gosto disso: ativismo judicial. Essas coisas acabam criando um caso ideológico, sendo tudo justificado em função de presteza, ligeireza e prontidão. As soluções devem vir no tempo certo. Existe um tempo necessário para se apurar a verdade das coisas, para se exercitar o direito de defesa. É o pacto social. É muito importante se poder recorrer das decisões, porque é terrível não ter como se defender de uma decisão arbitrária.

ConJur — Questões decididas em recurso repetitivo não são um exemplo de engessamento desse direito?
Hamilton Carvalhido — Não, porque todas essas questões, pelo menos na Primeira Seção, têm um componente mais técnico-jurídico, elas são essencialmente assentadas num juízo sobre a dimensão jurídica dos fatos. Mesmo assim, é complicado padronizar como um fato deve ser entendido, prender a vida em um modelo. O Supremo fixar entendimento que deve ser dado a uma norma constitucional é a coisa mais razoável, assim como o STJ definir o melhor entendimento de uma lei federal. Mas é preciso colocar esses remédios no lugar certo, não padronizar com presunções como determinado fato ou determinadas situações sociais concretas devem ser entendidas.

ConJur — O Judiciário pode obrigar o Executivo a implantar políticas públicas?
Hamilton Carvalhido — O problema é saber se o branco do Executivo na execução de uma política pública está sendo substituído pela sentença. Quando ninguém admitia ainda Mandado de Segurança em termos de greve de servidor público, eu fui um dos primeiros juízes a deferir, com base no fato de que o direito de greve está assegurado na Constituição, e alcança o servidor público. É um direito reconhecido na Carta Magna e que não pode ser exercido pelo seu titular. Há um limite para essa omissão do Legislativo e, quando esse limite é ultrapassado, o Judiciário deve ser chamado a suprir a omissão. Foi o que eu fiz aplicando a lei da greve geral aos servidores.

ConJur — Qual o limite para essas determinações?
Hamilton Carvalhido — O ministro Gilmar Mendes evocou a ideia da reserva do possível, ou seja, de que o Direito pode tudo, mas nem tudo. Não se pode ordenar que o Executivo construa um prédio como o do STJ para fazer uma creche. Há aí o problema da impossibilidade material. Mas, se você não pode comprar um medicamento e o Estado se nega a fornecê-lo, eu determino uma antecipação de tutela para que seja liberada a verba para você salvar os seus olhos ou sua vida naquele momento. Alguém pode dizer que esses diretos são mais programáticos do que propriamente um dever que se pode determinar. E que se o Estado oferece determinadas condições, além daquilo ninguém pode mandar. Eu digo que mais do que pode, deve. Já fiz várias vezes e farei quantas vezes precisar.

ConJur — Quando alega reserva do possível, o administrador precisa comprovar a falta do recurso financeiro?
Hamilton Carvalhido — As explicações têm que ser muito bem dadas. No caso das indenizações a anistiados, pessoas que perderam o emprego devido a portarias durante o regime militar, passaram por isso. Você condena o Estado à prestação pecuniária indenizatória, e ele simplesmente não paga nunca, porque a lei ressalva a observância da disponibilidade orçamentária. Então, esse ano não tem. No outro ano, também não. No outro ano, de novo. A gente vê que ninguém vai pagar. É por isso que concedemos Mandado de Segurança, determinando que se incluam os valores na previsão orçamentária do próximo exercício. O ideal era que se pudesse vincular a verba ao destino, mas isso não se pode fazer. Quando olhamos o Orçamento, a previsão até pode constar, mas o problema é a destinação. A administração alega que o principal é para isso ou aquilo, e os pagamentos nunca estão no bolo.

ConJur — No ano passado, o ministro decidiu que servidores públicos em greve não poderiam ter seus vencimentos descontados, tese que acabou vencida. Ainda mantém sua posição?
Hamilton Carvalhido — A greve é uma advertência, e eu assegurei que o salário não fosse descontado. A prática não está regulada, eles sequer tinham fundo de greve. Greves, como são consideradas na Europa, são movimentos de advertência, de conflito. Têm interesse público, social, trata-se de uma prática democrática, e temos de nos acostumar a isso. Todo mundo tem direito de dar um murro na mesa e dizer: "olhe para mim". Na Seção, porém, vitoriou o pensamento contrário, no qual eu também amadureci. As greves também não podem ser ad eternum. Mesmo o servidor público precisa ter uma disciplina de criar esse fundo de greve.

ConJur — Como o ministro vê a relativização de decisões transitadas em julgado que já estão em fase de execução? Uma decisão do Supremo Tribunal Federal que atinja o fundamento dessas sentenças pode desconstituí-las?
Hamilton Carvalhido — Relativizar a coisa julgada se faz necessário há muito tempo. Não se pode consolidar o absurdo sob o argumento do trânsito em julgado. Mas isso deve ser absolutamente excepcional. A coisa julgada é garantia individual. Não se pode permitir que toda a segurança jurídica escorra pelos dedos, reduzindo a coisa julgada a nada. Só se pode desconstituir uma coisa julgada quando ela é absolutamente contrária a todos os princípios, ou a uma decisão do Supremo, por exemplo.

ConJur — A quem compete analisar a legalidade da incorporação de instituições financeiras: ao Cade ou ao Banco Central?
Hamilton Carvalhido — Essa é uma questão que nós ainda estamos por resolver. A questão é saber se, por correr em determinado órgão, o processo fica inteiramente inibido em outro. É verificar se a análise pode ficar blindada porque teve uma passagem obrigatória por determinado setor do poder público, e se seria legítima a inibição da apuração de legalidade. A nossa solução foi de que eles vivem conjuntamente, cada um fazendo sua parte, em complementação.

ConJur — Empresa privada que faz fiscalização de trânsito poder aplicar multas, com poder de Polícia?
Hamilton Carvalhido — Sou extremamente contrário a isso. A delegação do poder de Polícia do Estado ao particular é sempre delicada, principalmente quanto à imposição de sanções que de alguma maneira gerem frutos no que a empresa aufere como resultado de sua atividade. O máximo que ela pode fazer é instalar radares.

ConJur — O ministro participou da elaboração do projeto do novo Código de Processo Penal. Como foi o trabalho?
Hamilton Carvalhido — Fui o presidente da comissão que inaugurou o projeto. O mais importante foi o Congresso Nacional chamar para si a iniciativa de criar ele mesmo seus próprios projetos. Democraticamente, é uma coisa muito boa, que tira o Ministério da Justiça, que é um órgão executivo, do papel de única fonte de projetos, do que jamais gostei. Essa praxe antiga faz com que as leis tenham a feição do regime, do ministro da Justiça, que forma comissões com membros com que tem afinidade. Dessa vez foi diferente. Elaborou-se um documento básico, discutido em audiências públicas com o país inteiro.

ConJur — O que lhe chamou a atenção?
Hamilton Carvalhido — Há uma disposição, modificada há pouco tempo, da qual eu me envergonho. Hoje, o juiz, ainda, pode dizer assim: "O Ministério Público não o acusou, mas na instrução vieram provas de que você praticou esse crime. Então, defenda-se". O juiz vira promotor, e nós aceitamos isso até hoje.

ConJur — O juiz criminal deve ser imparcial ou investigar a qualquer preço?
Hamilton Carvalhido — Juiz tem que ser juiz, não tem que ser Polícia nem Ministério Público. E o Ministério Público não tem que ser juiz. Só se reconhece como boa a iniciativa do juiz em apurar se for em favor do réu. É um ônus que a sociedade tem que suportar. O juiz não pode substituir o promotor para fazer prova, ou identificar fontes de prova, porque assim ele não estaria sendo juiz, mas Polícia.

ConJur — Qual deve ser a relação entre MP e juiz criminal?
Hamilton Carvalhido — Existe uma razão para que o juiz faça controle externo do Ministério Público, por exemplo, no arquivamento das investigações. Não pode acontecer de o juiz dizer: "eu não aceito o arquivamento", o procurador responder "mas eu quero" e o juiz acabar cedendo. Os próprios juízes não querem isso. Ou será melhor que a família do interessado recorra no Ministério Público? Não será melhor que o MP cumpra o papel que a Constituição lhe assegurou? A instituição é importante, útil, precisa se organizar, se estruturar.

ConJur — O Ministério Público pode investigar?
Hamilton Carvalhido — Não sou contra. A minha geração nasceu sob esse código autoritário, mas que tinha dogmas liberais. Um deles era o de que aquele que acusa não deve investigar. A visão era do Ministério Público meio magistrado, que oferecesse denúncia sem estar contaminado pela relação direta com a fonte de prova do crime. Essa é uma das coisas que não queremos tirar do código. O ideal é que a Polícia investigue e o Ministério Público acuse. São funções historicamente indissociáveis, nada obstando, contudo, que o membro do MP investigue, desde que fique impedido para o processo consequente.

ConJur — Isso não permite abusos?
Hamilton Carvalhido — O MP não está livre para sair acusando. O conceito de in dubio pro societate não existe no Estado Democrático de Direito. Se não há prova, não se pode embarcar na nuvem de uma dúvida e correr o risco de sentar um homem de bem no banco dos réus. O MP não tem direito de acusar sem prova bastante contra quem quer que seja. E a geração que chega tem que lutar por isso.

ConJur — Tem-se discutido sobre a tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia e o Ministério Público, sem o acompanhamento direto do Judiciário, o que aceleraria o inquérito. Há riscos para os investigados?
Hamilton Carvalhido — Nessa fase, o juiz dificilmente lê os documentos. Mas devido ao que a Polícia foi historicamente, há essa resistência à subordinação ao Ministério Público. Em todo país civilizado é assim, a Polícia investiga para o Ministério Público.






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