Um empresário do Rio Grande do Norte, acusado de envolvimento na chamada “máfia dos combustíveis”, teve seu pedido de habeas corpus negado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo a acusação, o empresário estaria entre os mentores de um esquema de sonegação responsável por prejuízos de mais de R$ 65 milhões ao fisco – no qual também estariam envolvidos diversos ocupantes de cargos públicos, entre eles o ex-governador do estado Fernando Antônio da Câmara Freire.
O réu, juntamente com outros acusados, teria montado um esquema para que a empresa American Distribuidora de Combustível Ltda. adquirisse e revendesse combustíveis sem recolher o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Entre setembro de 2002 e janeiro de 2003, um benefício fiscal irregular teria sido concedido para permitir que a American adquirisse combustível na Refinaria de Manguinhos sem a retenção do imposto nas operações de compra.
De acordo com a denúncia do Ministério Público, a empresa revendeu o combustível a terceiros sem emitir notas fiscais, sonegando assim os impostos devidos sobre as operações. Na denúncia, o MP afirma que o regime tributário especial que permitiu à American comprar combustível sem retenção do ICMS foi concedido mediante propinas pagas ao então governador Fernando Freire e seu secretário de tributação. Ainda segundo a denúncia, o empresário que pediu o habeas corpus ao STJ era dono informal da American e teria participado do pagamento das propinas.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN) negou o pedido de habeas corpus com o entendimento de que essa ação não seria adequada para decidir se houve cerceamento de defesa e do direito ao contraditório, conforme alegado. Considerou também que o Ministério Público teria procedido com a coleta de provas e investigações de modo adequado e, portanto, não haveria nulidade na denúncia.
No recurso ao STJ, alegou-se que o réu não seria parte legítima, por não ser sócio da American Distribuidora. Também foi sustentado que a denúncia seria inepta por não descrever a suposta conduta criminosa do acusado. O relator da matéria, ministro Marco Aurélio Bellizze, entretanto, considerou que a condição do réu como representante da empresa foi reconhecida pelo TJRN, e para rever esse entendimento seria necessário reexaminar as provas do processo – o que não é cabível em habeas corpus.
Antídoto restrito
“O que sempre sustentei e sustento é que o habeas corpus é antídoto de prescrição restrita, que se presta a reparar constrangimento ilegal evidente, incontroverso, indisfarçável, que se mostra de plano ao julgador. Não se destina à correção de controvérsias ou de situações que, ainda que existentes, demandam para sua identificação aprofundado exame de fatos e provas”, disse o relator. Para ele, o ideal “é que se proceda à verificação da idoneidade das provas no juízo de maior alcance – o juízo de primeiro grau”.
Quanto à alegada inépcia da denúncia, o ministro observou que os dados bancários obtidos na investigação indicam que, para conseguir o regime tributário especial, os representantes da American teriam pago propina ao ex-governador e ao secretário de tributação. “Esta ainda não é a fase juridicamente apropriada para se exigir do órgão acusatório a plena individualização da conduta de cada acusado”, afirmou o ministro, assinalando que essa individualização pode ocorrer no curso da instrução processual.
“A conclusão a que chego é a de que não carece a denúncia de aptidão formal. O Código de Processo Penal fala de ‘exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias’. Isso aqui ocorreu”, disse o ministro.
Para ele, “a denúncia está embasada em dados empíricos que tenho como fortes indícios de materialidade e autoria do crime. Não encontro justificativa para o encerramento prematuro da persecução penal. A denúncia foi oferecida de modo a permitir ao paciente o desembaraçado exercício da ampla defesa”.
A defesa também argumentou que o artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, seria inconstitucional, pois obrigaria o acusado a produzir prova contra si mesmo. Mais uma vez, o ministro relator não aceitou os argumentos.
Segundo Marco Aurélio Bellizze, o habeas corpus não pode ser usado para questionar a constitucionalidade de lei em tese, mas apenas para combater coação representada por “ato concreto que ponha em risco a liberdade de locomoção”.
Fatos supervenientes
Outra alegação da defesa era que a quebra de sigilo bancário havia sido decretada por juiz incompetente. A decisão foi tomada pelo juízo da 10ª Vara Criminal de Natal, que, depois, declinou da competência em favor da 4ª Vara Criminal. Sobre isso, o ministro Bellizze apontou que o juiz da 10ª Vara decretou a quebra do sigilo quando o que se apurava era apenas um suposto caso de crime tributário.
“A competência foi firmada com base nos fatos até então tidos como delituosos”, afirmou o ministro, observando que só posteriormente surgiram evidências de crimes contra a administração (como a acusação de corrupção passiva contra o ex-governador), as quais deslocaram a competência para a 4ª Vara. “Foram fatos novos, supervenientes àquela decisão”, disse o ministro, ao considerar que, de acordo com a jurisprudência do STJ, “a declinação de competência não tem o condão de, por si só, invalidar a prova até então regularmente produzida”.
Por fim, a defesa alegou que as investigações do Ministério Público seriam nulas, como também seriam nulos os depoimentos dados pelos corréus, já que o acusado não foi intimado para presenciá-los. O ministro relator rechaçou essas alegações, afirmando que o MP, segundo “pacífica jurisprudência do STJ”, tem prerrogativa de instaurar procedimentos de investigação e conduzir diligências, conforme previsto no artigo 129 da Constituição. “Dessa forma, a par das investigações destinadas à polícia nas áreas federal e estadual, o MP pode, concorrentemente, desempenhá-las”, apontou.
O ministro admitiu que impedir a participação do defensor de um réu no interrogatório ofenderia a ampla defesa, o contraditório e a isonomia, e geraria nulidade absoluta. Entretanto, mais uma vez, não foi o que ocorreu. “Uma leitura rápida das peças que instruem este processo revela que o impetrante foi intimado para todos os atos do processo. Foi dada à defesa oportunidade de participar dos interrogatórios dos corréus, optando esta por não comparecer”, asseverou.
Com essa fundamentação, o ministro Marco Aurélio Bellizze negou o pedido de habeas corpus e foi acompanhado pela maioria da Quinta Turma. Ficou vencido o desembargador convocado Adilson Vieira Macabu, que entendeu haver irregularidades na quebra do sigilo.
Coordenadoria de Editoria e Imprensa
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