Perda do feto em razão de acidente, em casos
em que se verifica má-formação congênita, clandestinos, causados por
medicamento, violência ou de forma espontânea – a verdade é uma só: o
aborto existe, e muitas brasileiras sofrem pela falta de amparo nos
serviços públicos de saúde. A despeito da falta de assistência
governamental, a gestação é interrompida independentemente de leis que
as proíbam ou de punição por parte do Judiciário.
Segundo dados
da organização não governamental que cuida do direito das mulheres Ipas
Brasil, em parceria com o Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em pesquisa denominada “A magnitude
do aborto no Brasil: aspectos epidemiológicos e socioculturais”, um
milhão de abortos são realizados todos os anos. A pesquisa foi realizada
em 2007 e esse número é contestado por segmentos contra o aborto. O
estudo aponta que a curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais
realizado na rede pública.
O aborto, contudo, é fato e,
geralmente, feito da pior maneira possível. Na Quinta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), tramita um habeas corpus em que a Defensoria
Pública pede o trancamento de investigação contra centenas de mulheres
suspeitas de fazer aborto em uma clínica de planejamento familiar em
Mato Grosso do Sul. A defesa alega violação do sigilo médico, já que
foram apreendidos os prontuários sem anuência do profissional. A
relatora é a ministra Laurita Vaz (HC 140123), que está com o parecer do
Ministério Público Federal sobre o caso. Ainda não há data prevista
para julgamento.
Além da constatação da prestação do serviço
médico inadequado e até mesmo irregular, o tema gera um amplo debate
moral, colocando como contraponto o direito absoluto da vida do feto e a
autonomia da mulher em relação ao próprio corpo.
Crime contra a pessoa
A
legislação penal brasileira só autoriza a prática do aborto em casos de
estupro ou nos casos que não há outro meio para salvar a vida da mãe. A
matéria está disciplinada pelos artigos 124 a 128 do Código Penal,
tipificando seis situações. No Brasil, o ato é classificado como crime
contra a pessoa, diferentemente do que ocorre em alguns países que o
classificam como crime contra a saúde ou contra a família. A lei
brasileira prevê pena de um a dez anos de reclusão para a gestante que
recorre a essa solução.
Para o ministro Napoleão Nunes Maia
Filho, que compõe a Quinta Turma do STJ, a melhor maneira de evitar uma
gravidez indesejada é investir nos contraceptivos, mesmo aqueles de
emergência. “Sou a favor de todo e qualquer método, principalmente
aqueles que evitam a proliferação de doenças sexualmente
transmissíveis”, diz ele.
O ministro acredita que a solução da
interrupção da gravidez em casos de violência deve ser conduzida pela
mulher, mesmo que ela seja casada ou que tenha um parceiro estável. “A
mulher é a grande responsável pela maternidade”, constata, “pois é ela
quem alimenta o filho durante a fase intrauterina, e quem tem a
responsabilidade do cuidado com o filho”.
O ministro é contra o
aborto e acredita que é um erro tratar a prática como um método
contraceptivo. Ele afirma que as autoridades governamentais deveriam
incentivar a distribuição de preservativo ou a injeção de pílulas do dia
seguinte. “É muito menos traumático para a mulher e para a sociedade”,
conclui.
Violência contra a mulher
Segundo
pesquisa da socióloga, Thais de Souza Lapa, na tese “Aborto e Religião
nos Tribunais Brasileiros”, de um universo de 781 acórdãos pesquisados
entre 2001 e 2006, 35% envolvem situações de violência contra a mulher.
Na seara dessa temática, o STJ analisou o caso em que um morador de São
Paulo desferiu, em 2 de abril de 2005, facadas na esposa, que estava no
quinto mês de gestação, e em mais duas pessoas, sendo uma maior de 60
anos (HC 139008).
O réu respondeu, entre outros, pelo crime de
provocar aborto sem o consentimento da gestante, o que, pela legislação
penal, acarreta a pena de três a dez anos de reclusão. A defesa
ingressou no STJ contra a inclusão da causa de aumento da pena na
pronúncia pela Justiça estadual, sem que houvesse menção a esta quando
da denúncia.
Segundo o relator, ministro Jorge Mussi, a
qualificadora pode ser incluída na pronúncia, ainda que não apresentada
na denúncia, uma vez que não provoca qualquer alteração do fato imputado
ao acusado. Pela lei penal, no homicídio doloso, a pena é aumentada de
1/3 se o crime é praticado contra menor de 14 anos ou maior de 60 anos.
Relações extraconjugais
A
violência contra a mulher pode surgir também de uma relação
extraconjugal, em que o parceiro se ressente de uma gravidez indesejada.
Entre 2008, um morador de Alegrete (RS) teria matado a amante com
golpes no crânio e ocultado o cadáver. Ele exigia que ela tomasse
medicamentos abortivos, mesmo já estando em fase avançada da gestação.
Seis
habeas corpus e um recurso especial foram apresentados em defesa dele,
além de um recurso especial interposto pelo Ministério Público gaúcho.
No último habeas corpus (HC 191340), apresentado em dezembro de 2010, a
defesa buscava a liberdade do acusado, alegando excesso de prazo da
prisão.
Mas o relator, ministro Og Fernandes, da Sexta Turma,
negou a liminar. Ainda falta a análise do mérito do pedido, o que deve
ser feito ainda este ano. Tanto o recurso especial apresentado pelo
acusado, quanto o apresentado pelo MP/RS (REsp 1222782 e REsp 1216522,
respectivamente) ainda serão analisados. O ministro Og Fernandes também é
o relator dos dois casos.
Outro caso de violência contra a
mulher resultou na condenação de Jefrei Noronha de Souza à pena de cinco
anos de reclusão. Ele respondeu pelas práticas de aborto não consentido
e sequestro qualificado (HC 75190). O réu mantinha um relacionamento
extraconjugal e, ao saber da gravidez da amante, simulou um sequestro
com amigos na cidade de Taubaté (SP) com o fim de eliminar a criança.
Consta da denúncia que os sequestradores introduziram medicamentos na
vagina da vítima e depois, com a expulsão, jogaram o feto no vaso
sanitário e acionaram a descarga.
A defesa alegou que o crime de
aborto, por si só, já representava grave sofrimento moral e físico, de
modo que o juiz não podia aplicar a qualificadora do parágrafo 2º do
artigo 148 do Código Penal. Esse artigo trata da agravante do crime de
sequestro e prevê pena de reclusão de dois a oito anos a quem impuser
grave sofrimento físico ou moral à vítima. O objetivo da defesa era
aplicar ao caso o princípio da consunção, segundo o qual se houver um
crime-meio, de sequestro, ocorre absorção pelo crime-fim, aborto.
O
Tribunal local entendeu que os delitos de sequestro e aborto visam a
proteger bens jurídicos distintos. O primeiro, a liberdade individual, e
o segundo, a própria vida. A Sexta Turma não apreciou a tese em virtude
de já haver trânsito em julgado da decisão do Júri e de envolver
matéria de prova, o que é vedado pela Súmula n. 7 do STJ.
Fornecimento de medicação
Não
só a gestante, mas também a pessoa que instiga ou auxilia no aborto
responde judicialmente pelo crime, inclusive quem fornece a droga. É o
caso do teor de um agravo em que pesou sobre o réu a acusação de ter
praticado o crime sem o consentimento da gestante (Ag 989.744), o que
acarreta uma pena de um a quatro anos de reclusão. O aborto clandestino
geralmente ocorre em clínicas médicas e com o apoio de conhecidos, e
usualmente com a ingestão de medicamentos, o mais comum, o Cytotec.
Um
caso de aborto provocado por terceiros foi o relativo a um julgado de
São Paulo, em que o réu vendeu esse medicamento sem registro (HC
100.502). O Cytotec foi lançado na década de 70 para o tratamento de
úlcera duodenal. No entanto, vem sendo largamente utilizado como
abortivo químico. Sua aquisição se faz via mercado negro ou por meio de
receita especial. A questão analisada pelo STJ remetia à aquisição
irregular.
A defesa buscava anular a sentença de pronúncia com o
argumento de que não foi comprovado que o uso do medicamento teria
causado o aborto. A Turma entendeu que o crime se configura com a
própria venda irregular, de forma que não é necessária a perícia para
verificação da qualidade abortiva da droga.
A lei também apena
não só o fornecedor, mas os profissionais que auxiliam a prática do
aborto, com base no artigo 126 do Código Penal. Um ginecologista foi
preso em flagrante em sua clínica no centro de Porto Alegre (RS), em
junho de 2008, e respondeu por aborto qualificado por quatro vezes,
aborto simples, também por quatro vezes, tentativa de aborto e formação
de quadrilha. Ele pedia no STJ o relaxamento da prisão cautelar, mas,
segundo a Corte, os reiterados atos justificaram a prisão.
Bebês anencéfalos
Os
casos que trazem maior polêmica ao Judiciário são os de anencefalia e
má-formação do feto. A anencefalia consiste em uma má-formação rara do
tubo neural que ocorre entre o 16° e o 26° dia de gestação e se
caracteriza pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. A
causa mais comum é, supostamente, a deficiência de nutrientes, entre
eles o ácido fólico. Também diante da falta de vitaminas, há dificuldade
na formação do tubo neural.
A ministra Laurita Vaz reconheceu
no julgamento do HC 32.159 que o tema é controverso, porque envolve
sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e
morais. “Contudo, independentemente de convicções subjetivas pessoais, o
que cabe ao STJ é o exame da matéria sob o enfoque jurídico”, assinalou
a ministra. Para ela, não há o que falar em certo ou errado, moral ou
imoral.
O habeas corpus discutia a autorização para o aborto que
havia sido dada pela Justiça do Rio de Janeiro. Para a ministra Laurita
Vaz, o Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses
autorizadoras do aborto, previstas no artigo 128 do Código Penal, esse
caso. “O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é
lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da lei,
que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma
propositada pelo legislador”.
Segundo o ministro Napoleão Nunes,
a vivência religiosa ou filosófica interfere nos julgamentos, pois, em
princípio, elas influenciam a conduta humana. O ministro entende que a
questão da anencefalia não deve ser entendida sob a perspectiva
puramente religiosa, mas sob uma perspectiva médica, e cada caso é
único. “Não se pode estabelecer uma regra única de solução, ainda mais
porque há questões em aberto”, diz.
Perda do objeto
Nos
tribunais superiores, segundo análise da socióloga Thais de Souza,
entre os anos de 2001 e 2006, não havia decisões favoráveis em sua
pesquisa para o pedido de interrupção de gravidez no caso de
anencefalia, pois ocorria perda de objeto. O bebê já tinha nascido ou a
gravidez já estava bastante adiantada, dificultando a análise. A
jurisprudência do STJ confirma essa constatação. Em 2006, três acórdãos
perderam o objeto pelas razões enumeradas (HC 54317, HC 47371 e HC
56572).
Em um dos habeas corpus, um casal de São Paulo pedia
para interromper a gravidez em decorrência de anencefalia. A mulher
tinha ultrapassado a 31ª semana de gestação e passados 50 dias da
impetração junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ainda não
havia uma decisão de mérito. O STJ considerou que, devido ao fato de a
gestação estar estágio bastante avançado, deveria ser reconhecida a
perda de objeto da impetração.
O relator, ministro Arnaldo
Esteves Lima, no entanto, ponderou que, havendo diagnóstico médico
definitivo que ateste a inviabilidade de vida após a gravidez, a indução
antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte
do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia. A Quinta
Turma entendeu que a via do habeas corpus é adequada para pleitear a
interrupção da gravidez, tendo em vista a real ameaça de constrição da
liberdade da mulher.
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