CAPÍTULO 1 - Introdução ao Direito Processual Civil
1. INTRODUÇÃO
Na introdução de um Curso de Direito Processual Civil, hão de constar as premissas teóricas que permeiam toda a obra, notadamente quando são indispensáveis à correta compreensão da Teoria Geral do Processo, da Ciência do Direito Processual Civil e do próprio Direito Processual Civil.
Este Curso pauta-se na premissa de que o direito processual
civil contemporâneo deve ser compreendido a partir da resultante das relações
entre o Direito Processual e a Teoria Geral do Direito, o Direito
Constitucional e o respectivo Direito material.
É preciso estabelecer um diálogo doutrinário
interdisciplinar'.
A relação entre o processo e o direito material, embora
reconhecida há bastante tempo, deve ser continuamente lembrada e revisitada.
A Teoria Geral do Direito e o Direito Constitucional têm
passado por profundas transformações nos últimos anos. Todas elas repercutiram
e repercutem no direito processual.
Esse capítulo tem o objetivo de introduzir o aluno ao modelo
teórico que se reputa mais adequado para a correta compreensão e aplicação do
direito processual.
Primeiramente, vamos examinar a relação entre o processo e o
direito material.
Depois, verificaremos de que modo as recentes transformações
da metodologia jurídica repercutiram na Teoria Geral do Direito e no Direito
Constitucional e, então, de que modo tudo isso repercutiu no direito
processual.
Ao final, abordaremos a questão do enquadramento do direito
brasileiro nos modelos de sistema jurídico conhecidos como civil law e common
law.
A pretensão didática deste Curso impede maiores divagações.
Os temas serão abordados com a profundidade suficiente apenas para que possam
ser demonstradas as suas conexões com o direito processual.
2. CONCEITO DE PROCESSO
O processo pode ser examinado sob perspectiva vária. Variada
será, pois, a sua definição.
O processo pode ser compreendido como método de criação de
normas jurídicas, ato jurídico complexo (procedimento) e relação jurídica.
Sob o enfoque da Teoria da Norma jurídica, processo é o
método de produção de normas jurídicas.
O poder de criação de normas (poder normativo) somente pode
ser exercido processualmente. Assim, fala-se em processo legislativo (produção
de normas gerais pelo Poder Legislativo), processo administrativo (produção de
normas gerais e individualizadas pela Administração) e processo jurisdicional
(produção de normas pela jurisdição). É possível, ainda, conceber o processo
negocial, método de criação de normas jurídicas pelo exercício da autonomia
privada. Para esse livro, importa
destacar a concepção de processo como método de exercício da jurisdição. Sob
esse enfoque, o conceito de processo pertence à Teoria Geral do Direito , para
além da Teoria Geral do Processo, que de resto é um excerto daquela.
A jurisdição exerce-se processualmente. Mas não é qualquer
processo que legitima o exercício da função jurisdicional. Ou seja: não basta
que tenha havido processo para que o ato jurisdicional seja válido e justo.
O método-processo deve seguir o modelo traçado na
Constituição, que consagra o direito fundamental ao processo devido, com todos
os seus corolários (contraditório, proibição de prova ilícita, adequação,
efetividade, juiz natural, duração razoável do processo etc.). A análise do
modelo de processo civil brasileiro será feita no capítulo sobre as normas
fundamentais do processo civil.
O processo sob a perspectiva da Teoria do Fato jurídico é
uma espécie de ato jurídico. Examina-se o processo a partir do plano da
existência dos fatos jurídicos. Trata-se de um ato jurídico complexo. Processo,
neste sentido, é sinônimo de procedimento.
O ato jurídico complexo é aquele "cujo suporte fáctico
é complexo e formado por vários atos jurídicos. (...) No ato-complexo há um ato
final, que o caracteriza, define a sua natureza e lhe dá a denominação e há o
ato ou os atos condicionantes do ato final, os quais, condicionantes e final,
se relacionam entre si, ordenadamente no tempo, de modo que constituem partes
integrantes de um processo, definido este como um conjunto ordenado de atos
destinados a um certo fim" ^
Enquadra-se o procedimento na categoria "ato-complexo
de formação sucessiva": os vários atos que compõem o tipo normativo
sucedem-se no tempos O procedimento é ato-complexo de formação sucessiva , porquanto
seja um conjunto de atos jurídicos (atos processuais), relacionados entre si,
que possuem como objetivo comum, no caso do processo judicial, a prestação
jurisdicional?. O conceito de processo, também aqui, é um conceito da Teoria
Geral do Direito, especialmente da Teoria Geral do Processo, que é sub-ramo
daquela.
Pode-se conceber o procedimento como um gênero, de que o
processo seria uma espécie. Neste sentido, processo é o procedimento
estruturado em contraditório^
Sucede que, atualmente, é muito rara, talvez inexistente, a
possibilidade de atuação estatal (ou privada, no exercício de um poder
normativo) que não seja "processual"; ou seja, que não se realize por
meio de um procedimento em contraditório. Cogita-se, então, um direito fundamental
à processualização dos procedimentos: "que sustenta a processualização de
âmbitos ou atividades estatais ou privadas que, até então, não eram entendidas
como susceptíveis de se desenvolverem processualmente, desprendendo-se tanto da
atividade jurisdicional, como da existência de litígio, acusação ou mesmo risco
de privação da liberdade ou dos bens".
Ainda de acordo com a Teoria do Fato jurídico, o processo
pode ser encarado como efeito jurídico; ou seja, pode-se encará-lo pela
perspectiva do plano da eficácia dos fatos jurídicos. Nesse sentido, processo é
o conjunto das relações jurídicas que se estabelecem entre os diversos sujeitos
processuais (partes, juiz, auxiliares da justiça etc.)1c\ Essas relações
jurídicas processuais formam-se em diversas combinações: autor-juiz, autor-réu,
juiz-réu, autor-perito, juiz-órgão do Ministério Público etc.
Pode causar estranheza, de fato, a utilização de um mesmo
termo (processo) para designar o fato jurídico e os seus respectivos efeitos
jurídicos. Carnelutti apontara o problema, ao afirmar que, estando o processo
regulado pelo Direito, não pode deixar de dar ensejo a relações jurídicas, que
não poderiam ser ao mesmo tempo o próprio processo".
A prática, porém, é corriqueira na ciência jurídica.
Prescrição, por exemplo, tanto serve para designar o ato-fato jurídico (omissão
no exercício de uma situação jurídica por determinado tempo) como o efeito
jurídico (encobrimento da eficácia de uma situação jurídica).
Por metonímia, pode-se afirmar que essas relações jurídicas
formam uma única relação jurídica, que também se chamaria processo. Essa
relação jurídica é composta por um conjunto de situações jurídicas (direitos,
deveres, competências, capacidades, ônus etc.) de que são titulares todos os
sujeitos do processo. É por isso que se costuma afirmar que o processo é uma
relação jurídica complexa. Assim, talvez fosse mais adequado considerar o
processo, sob esse viés, um conjunto (feixe) de relações jurídicas. Como
ressalta Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, "há a relação jurídica processual
(que não deve ser usada com a pretensão de exaurir o fenômeno processual),
assim como pode haver outras tantas relações jurídicas processuais decorrentes
de fatos jurídicos processuais".
É possível, em nível teórico, estabelecer um conceito de
processo como relação jurídica, nestes termos. Não se pode, no entanto, definir
teoricamente o conteúdo dessa relação jurídica, que deverá observar o modelo de
processo estabelecido na Constituição. Ou seja: não há como saber, sem examinar
o direito positivo, o perfil e o conteúdo das situações jurídicas que compõem
esse feixe de situações jurídicas, chamado "processo". No caso do
direito brasileiro, por exemplo, para definir o conteúdo eficacial da relação
jurídica processual, será preciso compreender o devido processo legai e os seus
corolários, o que será feito no capítulo sobre as normas fundamentais do
processo civil.
Assim, não basta afirmar que o processo é uma relação
jurídica, conceito lógico-jurídico que não engloba o respectivo conteúdo desta
relação jurídica. É preciso lembrar que se trata de uma relação jurídica cujo
conteúdo será determinado, primeiramente, pela Constituição e, em seguida,
pelas demais normas processuais que devem observância àquela.^
Note-se que, para encarar o processo como um procedimento
(ato jurídico complexo de formação sucessiva), ou, ainda como um procedimento
em contraditório, segundo a visão de Fazzalari, não se faz necessário abandonar
a ideia de ser o processo, também, uma relação jurídica.
O termo "processo" serve, então, tanto para
designar o ato processo como a relação jurídica que dele emerge.
O art. 14 do CPC ratifica essa compreensão sobre o processo:
"A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos
processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações
jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada". Observe que o
legislador fala em "atos processuais praticados e as situações jurídicas
consolidadas". Exatamente como ora se propõe.
3. TEORIA GERAL DO PROCESS0,
CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO PROCESSUAL CIVIL
A Teoria Geral do Processo, Teoria do Processo, Teoria Geral
do Direito Processual ou Teoria do Direito Processual é uma disciplina jurídica
dedicada à elaboração, à organização e à articulação dos conceitos jurídicos
fundamentais (lógico-jurídicos) processuais.
São conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos)
processuais todos aqueles indispensáveis à compreensão jurídica do fenômeno
processual, onde quer que ele ocorra. Ou seja: são conceitos que servem como
pressuposto para uma abordagem científica do Direito positivo. São exemplos:
processo, competência, decisão, cognição, admissibilidade, norma processual,
demanda, legitimidade, pretensão processual, capacidade de ser parte,
capacidade processual, capacidade postulatória, prova, presunção e tutela
jurisdicional.
A Teoria Geral do Processo é uma parte da Teoria Geral do
Direito^
A Teoria Geral do Processo é, em relação à Teoria Geral do
Direito, uma teoria parcial, pois se ocupa dos conceitos fundamentais
relacionados ao processo, um dos fatos sociais regulados pelo Direito.
É uma disciplina filosófica, de viés epistemológico. Nesse
sentido, como excerto da Epistemologia do Processo, é ramo da Filosofia do
Processo.
A Teoria Geral do Processo pode ser compreendida como uma
teoria geral, pois os conceitos jurídicos fundamentais (lógico-jurídicos)
processuais, que compõem o seu conteúdo, têm pretensão universal. Convém
adjetivá-la como "geral" exatamente para que possa ser distinguida
das teorias individuais do processo, que têm pretensão de servir à compreensão
de determinadas realidades normativas'9, como o Direito brasileiro ou italiano.
O Direito Processual Civil é o conjunto das normas que
disciplinam o processo jurisdicional civil - visto como ato-jurídico complexo
ou como feixe de relações jurídicas. Compõe-se das normas que determinam o modo
como o processo deve estruturar-se e as situações jurídicas que decorrem dos
fatos jurídicos processuais.
A Ciência do Direito Processual Civil (Ciência Dogmática do
Processo ou, simplesmente, Ciência do Processo) é o ramo do pensamento jurídico
dogmático dedicado a formular as diretrizes, apresentar os fundamentos e
oferecer os subsídios para as adequadas compreensão e aplicação do Direito
Processual Civil. O Direito Processual Civil é o objeto desta Ciência.
Cabe à Ciência do Direito Processual Civil, por exemplo, a
elaboração, articulação e sistematização dos conceitos jurídico-positivos, construídos
para a compreensão de um determinado direito positivo. Um exemplo: é a Ciência
do Processo que definirá o que são a apelação, uma liminar, uma decisão
interlocutória, uma penhora, uma reconvenção etc., para o direito processual
civil brasileiro.
Note, assim, que são dois planos distintos de linguagem: o
plano normativo (Direito Processual) e o plano doutrinário (Ciência do Direito
Processual). O plano da linguagem doutrinária opera sobre o plano normativo,
por isso a linguagem doutrinária é considerada uma metalinguagem: linguagem
(científica) sobre linguagem (normativa).
A relação entre a Teoria Geral do Processo e a Ciência do Direito Processual é a mesma
que se estabelece entre a Teoria Geral do Direito e a Ciência (dogmática) do
Direito. Ambas são linguagens científicas - não normativas, pois. A relação
entre esses dois níveis de linguagem é permanente e inevitável, mas é preciso
que fiquem sempre claras as suas diferenças2\
A separação entre as linguagens da Teoria Geral do Processo
e da Ciência do Processo é imprescindível para a boa qualidade da produção
doutrinária. Há problemas de direito positivo que, por vezes, são examinados
como se fossem problemas gerais. Essa falha de percepção compromete a qualidade
do trabalho doutrinário.
Uma coisa é discutir o conteúdo das normas de um determinado
Direito Positivo - saber a) se o juiz pode ou não determinar provas sem
requerimento das partes; b) qual é o recurso cabível contra determinada
decisão; c) se determinada questão pode ser alegada a qualquer tempo durante o
processo; d) como se conta o prazo para a apresentação da defesa etc. Esses são
problemas da Ciência do Direito Processual.
Coisa bem distinta é saber o que a) é uma decisão judicial,
b) se entende por prova; c) torna uma norma processual; d) é o processo. Essas
são questões anteriores à análise do Direito positivo; o aplicador do Direito
deve conhecê-las antes de examinar o Direito Processual; são pressupostos para
a compreensão do Direito Processual, pouco importa o conteúdo de suas normas.
Esses são os problemas atinentes à Teoria Geral do Processo.
Enfim, a Teoria Geral do Processo tem como objeto a Ciência
do Direito Processual (civil, penal ou trabalhista etc.), e não o Direito
Processual. Ela não se preocupa com o Direito Processual; ou seja, não se atém
ao conteúdo das suas normas.
É uma terceira camada de linguagem.
Direito Processual Civil (linguagem 1, normativa) = objeto
da Ciência do Direito Processual Civil (linguagem 2, doutrinária).
Ciência do Direito Processual (jurisdicional,
administrativo, legislativo ou privado) = objeto da Teoria Geral do Processo
(linguagem 3, também doutrinária).
Há quem trate a Teoria Geral do Processo como o conjunto das
normas jurídicas processuais fundamentais, principalmente as constitucionais.
Teoria Geral do Processo seria, nesse sentido, um Direito Processual Geral e
Fundamental". Boa parte das críticas dirigidas à Teoria Geral do Processo
parte da premissa de que ela equivale à criação de um Direito Processual único,
aplicável a todas as modalidades de processo2^
Essa é, inclusive, a premissa de que parte a maioria dos
processualistas penais brasileiros sobre o assunto, que, por isso, rejeitam a
existência de uma Teoria Geral do Processo
Os críticos incorrem em aberratio ictus: miram a Teoria
Geral do Processo e acertam o direito processual unitário (civil e penal);
quando investem, "armas em riste", contra a Teoria Geral do Processo,
atacam o "quartel vizinho" àquele que deveriam atacai Há erro sobre o
objeto criticado: Teoria Geral do Processo não é Direito Processual Unitário. A
argumentação rui por causa da falha na fundação. Essas críticas partem do
equívoco metodológico de confundir o produto da Filosofia do Processo
(especificamente, da Teoria Geral do Processo) com o conjunto de normas jurídicas
processuais, elas mesmas objeto de investigação pela Ciência Dogmática do
Processo'^ Enfim, em qualquer dos casos, é mixórdia epistêmica que certamente
compromete a qualidade da argumentação.
Como afirma Afrânio da Silva jardim, conhecido processualista
penal brasileiro: "mais do que uma necessidade metodológica para o estudo
dos vários ramos do Direito Processual, a teoria geral do processo é uma
consequência inarredável do estudo sistemático das diversas categorias
processuais"2^
Do mesmo modo, a Teoria Geral do Processo não se confunde
com a "Parte Geral" de um Código ou de um Estatuto processual'8 Como
já se viu, não devem ser confundidas as duas dimensões da linguagem jurídica: a
linguagem do Direito e a linguagem da Ciência do Direito. A Parte Geral é um
conjunto de enunciados normativos; é linguagem prescritiva, produto da
atividade normativa. A "Parte Geral" não é a sistematização da Teoria
Geral do Processo, que deve ser feita pela Epistemologia do Processo. Parte
Geral é excerto de determinado diploma normativo (Códigos, estatutos etc.),
composto por enunciados normativos aplicáveis a todas as demais parcelas do
mencionado diploma e, eventualmente, até mesmo a outras regiões do ordenamento
jurídico. Eventual sistematização da Teoria Geral do Processo daria lugar a um
livro de Filosofia do Processo, tese ou manual, produto da atividade
científica, não da legislativa.
4. PROCESSO E DIREITO MATERIAL. INSTRUMENTALIDADE DO
PROCESSO. RELAÇÃO CIRCULAR ENTRE O DIREITO MATERIAL E O PROCESSUAL
O processo é um método de exercício da jurisdição. A
jurisdição caracteriza-se por tutelar situações jurídicas concretamente
afirmadas em um processo. Essas situações jurídicas são situações substanciais
(ativas e passivas, os direitos e deveres, p. ex.) e correspondem, grosso modo,
ao mérito do processo. Não há processo oco: todo processo traz a afirmação de
ao menos uma situação jurídica carecedora de tutela jurisdicional. Essa
situação jurídica afirmada pode ser chamada de direito material processualizado
ou simplesmente direito material.
Se em todo processo há uma situação jurídica substancial
afirmada ("direito material", na linguagem mais frequente), a relação
entre eles é bastante íntima, como se supõe. A separação que se faz entre
"direito" e "processo", importante do ponto de vista
didático e científico, não pode implicar um processo neutro em relação ao
direito material que corresponde ao seu objeto.
O processo deve ser compreendido, estudado e estruturado
tendo em vista a situação jurídica material para a qual serve de instrumento de
tutela. A essa abordagem metodológica do processo pode dar-se o nome de
instrumentalismo, cuja principal virtude é estabelecer a ponte entre o direito
processual e o direito material.
O termo instrumentalismo não significa qualquer espécie de
diferença "hierárquica" entre o processo e o direito material. Não se
pode ignorar a lição de Calmon de Passos, que não aceita a existência da
"instrumentalidade do processo". Eis excerto da sua lição: " ...separar
o direito, enquanto pensado, do processo comunicativo que o estrutura como
linguagem, possibilitando sua concreção como ato decisório, será dissociar-se o
que é indissociável. Em resumo, não há um direito independente do processo de
sua enunciação, o que equivale a dizer-se que o direito pensado e o processo do
seu enunciar fazem um. Falar-se, pois, em instrumentalidade do processo é
incorrer-se, mesmo que inconsciente e involuntariamente, em um equívoco de
graves consequências, porque indutor do falso e perigoso entendimento de que é
possível dissociar-se o ser do direito do dizer sobre o direito, o ser do
direito do processo de sua produção, o direito material do direito processual.
Uma e outra coisa fazem um".
Calmon de Passos está certíssimo. O Direito só é após ser
produzido. E o Direito se produz processualmente. Quando se fala em
instrumentalidade do processo, não se quer minimizar o papel do processo na
construção do direito, visto que é absolutamente indispensável, porquanto
método de controle do exercício do poder. Trata-se, em verdade, de dar-lhe a
sua exata função, que é a de coprotagonista. Forçar o operador jurídico a
perceber que as regras processuais hão de ser interpretadas e aplicadas de
acordo com a sua função, que é a de emprestar efetividade às normas materiais.
Observe que essa perspectiva é fundamental para compreender
uma série de institutos processuais: a) causa de pedir (capítulo sobre formação
do processo e petição inicial, neste volume do Curso); b) conteúdo da sentença
e coisa julgada (v. 2 do Curso); c) intervenções de terceiro (neste volume do
Curso); d) defesas do demandado (neste volume do Curso); e) princípio da
adequação do processo (capítulo sobre normas fundamentais do processo civil,
neste volume); f) direito probatório (v. 2 deste Curso); g) as peculiaridades
do processo coletivo (v. 4 deste Curso) etc. É impossível compreender esses
temas sem analisar a relação que cada um desses institutos mantém com o direito
material processualizado.
Bem pensadas as coisas, a relação que se estabelece entre o
direito material e o processo é circular. "O processo serve ao direito
material, mas para que lhe sirva é necessário que seja servido por ele"32
É como afirma Hermes Zaneti jr.:
"Continuarão existindo dois planos distintos, direito
processual e direito material, porém a aceitação desta divisão não implica
torná-los estanques, antes imbricá-los pelo 'nexo de finalidade' que une o
instrumento ao objeto sobre o qual labora. Da mesma maneira que a música
produzida pelo instrumento de quem lê a partitura se torna viva, o direito
objetivo, interpretado no processo, reproduz no ordenamento jurídico um novo
direito"3^
Ao processo cabe a realização dos projetos do direito
material, em uma relação de complementaridade que se assemelha àquela que se
estabelece entre o engenheiro e o arquiteto. O direito material sonha, projeta;
ao direito processual cabe a concretização tão perfeita quanto possível desse
sonho. A instrumentalidade do processo pauta-se na premissa de que o direito
material coloca-se como o valor que deve presidir a criação, a interpretação e
a aplicação das regras processuais.
O processualista contemporâneo não pode ignorar isso.
5. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO PENSAMENTO JURÍDICO
CONTEMPORÂNEO
A metodologia jurídica transformou-se sensivelmente a partir
da segunda metade do século XX. Embora não seja este Curso o local adequado
para fazer uma resenha deste processo histórico, não se pode deixar de afirmar
uma quase obviedade: o Direito processual civil não ficou imune a toda essa
transformação.
A compreensão e a aplicação do Direito processual não podem
prescindir desta nova metodologia.
Isso não significa que devam ser desprezadas as
"velhas" construções da ciência jurídica, tão ou mais imprescindíveis
para a correta compreensão do fenômeno processual. Os institutos da Teoria
Geral do Direito (situações jurídicas, fatos jurídicos, norma jurídica etc.) e
a História do Direito e do pensamento jurídico, tradicionais objetos das
investigações científicas, não podem ser ignorados. A Teoria Geral do Processo,
aliás, é composta exatamente desses conceitos jurídicos fundamentais, conforme
vimos em item precedente.
O que se busca realçar neste capítulo é a necessidade de um
aggiornarmento do repertório teórico do operador do Direito.
É preciso, então, apontar as principais marcas do pensamento
jurídico contemporâneo e examinar de que modo elas vêm interferindo no Direito
processual civil e na Teoria Geral do Processo.
Sem qualquer pretensão de exaurir a investigação sobre o
tema e dando relevo apenas àquelas que mais se relacionam à aplicação do
Direito processual civil, eis o rol das mais importantes características do
atual pensamento jurídico .
a) Reconhecimento da força normativa da Constituição, que
passa a ser encarada como principal veículo normativo do sistema jurídico, com
eficácia imediata e independente, em muitos casos, de intermediação
legislativa.
A afirmação atualmente parece ser um truísmo. Mas nem sempre
foi assim. Após a Constituição de 1988, a doutrina passou a defender a tese de
que a Constituição, como fonte de normas jurídicas, deveria ser aplicada pelo
órgão jurisdicional. Como explica Daniel Sarmento :
"O que hoje parece uma obviedade, era quase
revolucionário numa época em que a nossa cultura jurídica hegemônica não
tratava a Constituição como norma, mas como pouco mais do que um repositório de
promessas grandiloquentes, cuja efetivação dependeria quase sempre da boa
vontade do legislador e dos governantes de plantão. Para o constitucionalismo
da efetividade, a incidência direta da Constituição sobre a realidade social,
independentemente de qualquer mediação legislativa, contribuiria para tirar do
papel as proclamações generosas de direitos contidas na Carta de 88, promovendo
justiça, igualdade e liberdade".
Passa-se, então, de um modelo de Estado fundado na lei
(Estado legislativo) para um modelo de Estado fundado na Constituição (Estado
Constitucional^.
b) Desenvolvimento
da teoria dos princípios, de modo a reconhecer-lhes eficácia normativa38: o
princípio deixa de ser técnica de integração do Direito e passa a ser uma
espécie de norma jurídica.
c) Transformação
da hermenêutica jurídica, com o reconhecimento do papel criativo e normativo da
atividade jurisdicional: a função jurisdicional passa a ser encarada como uma
função essencial ao desenvolvimento do Direito, seja pela estipulação da norma
jurídica do caso concreto, seja pela interpretação dos textos normativos,
definindo-se a norma geral que deles deve ser extraída e que deve ser aplicada
a casos semelhantes.
Estabelece-se, ainda, a distinção teórica entre texto e
norma, sendo essa o produto da interpretação daquele39.
Há texto sem norma, bem como há norma sem texto. A norma é o
produto da interpretação do sistema normativo. Veja-se o seguinte texto
normativo: "Proíbe-se a utilização de biquíni". Este texto, no início
do século XX, seria compreendido como uma norma que impõe o uso de roupas de
banho menos sumárias. Este mesmo texto posto em alguma placa em uma praia
brasileira, portuguesa, francesa etc., nos dias atuais, poderia ser compreendido
como uma autorização para a prática do naturismo. Como se vê, a depender das
circunstâncias históricas, o mesmo texto pode gerar normas até mesmo opostas.
Consagram-se as máximas (postulados, princípios ou regras,
conforme a teoria que se adote) da proporcionalidade e da razoabilidade na
aplicação das normas.
Identifica-se o método da concretização dos textos
normativos, que passa a conviver com o método da subsunção"0^ Expande-se,
ainda, a técnica legislativa das cláusulas gerais, que exigem do órgão
jurisdicional um papel ainda mais ativo na criação do Direito.
d) Expansão e consagração dos direitos fundamentais, que
impõem ao Direito positivo um conteúdo ético mínimo que respeite a dignidade da
pessoa humana e cuja teoria jurídica se vem desenvolvendo a passos largos.
Examinadas isoladamente, essas características podem parecer
não ser grande novidade: em países diversos, em momentos históricos diversos,
uma ou outra aparecia no pensamento jurídico e na prática jurídica . Talvez o
que marque este momento histórico seja a conjunção de todas elas, que vêm
inspirando doutrinadores em inúmeros países.
Vejamos alguns exemplos de como essas transformações têm
repercutido no Direito processual. Antes, porém, examinaremos uma questão de
cunho terminológico e histórico: qual deve ser a designação deste estágio do
desenvolvimento do Direito processual.
6. NEOCONSTITUCIONALISMO, NEOPROCESSUALISMO OU FORMALISMO
VALORATIVO. A ATUAL FASE METODOLÓGICA DA CIÊNCIA DO PROCESSO
A essa fase atual do pensamento jurídico deu-se o nome de
Neoconstitucionalismo"'. A designação não é das melhores, em razão da sua
vagueza , mas indiscutivelmente tem apelo, razão pela qual se tem difundido com
muita facilidade, principalmente nos países latinos. Há quem denomine esta fase
de "pós-posi- tivismo", o que também não quer dizer muita coisa, a
não ser o fato de que é um estágio posterior ao "positivismo"
característico da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX.
Talvez fosse mais adequado referir a um "positivismo jurídico
reconstruído" ou neopositivismo.
Há muitas críticas ao Neoconstitucionalismo. Fugiria às
pretensões didáticas deste Curso fazer uma resenha de todo pensamento sobre o
tema.
Pode-se afirmar que não há dissenso em torno das
características gerais desta atual fase da metodologia jurídica, apontadas no
item anterior
As discussões têm por alvo a terminologia , aspecto que
reputamos secundário, e os abusos e incompreensões que o oba-oba47 em torno
dessas transformações tem causado.
Os abusos e incompreensões revelam-se basicamente em uma
postura de supervalorização dessas "novidades": a) supervalorizam-se
as normas-princípio em detrimento das normas-regra, como se aquelas sempre
devessem preponderar em relação a essas e como se o sistema devesse ter mais
normas-princípio do que normas-regra, ignorando o importantíssimo papel que as
regras exercem no sistema jurídico: reduzir a complexidade do sistema e
garantir segurança jurídica; b) supervaloriza-se o Poder judiciário em detrimento
do Poder Legislativo, em grave prejuízo à democracia e à separação de poderes;
c) supervaloriza-se a ponderação em detrimento da subsunção, olvidando que a subsunção
é método bem adequado à aplicação das normas-regra48, de resto as espécies
normativas mais abundantes no sistema.
As críticas são indispensáveis. A história do pensamento
jurídico costuma desenvolver-se em movimento pendular: essas transformações
puxam para um lado; as críticas, para o outro; no final do "cabo de guerra",
chega-se ao equilíbrio.
A evolução histórica do direito processual costuma ser
dividida em três fases:
a) praxismo
ou sincretismo, em que não havia a distinção entre o processo e o direito
material: o processo era estudado apenas em seus aspectos práticos, sem
preocupações científicas;
b) processualismo,
em que se demarcam as fronteiras entre o direito processual e o direito
material, com o desenvolvimento científico das categorias processuais;
c) instrumentalismo,
em que, não obstante se reconheçam as diferenças funcionais entre o direito
processual e o direito material, se estabelece entre eles uma relação circular
de interdependência: o direito processual concretiza e efetiva o direito
material, que confere ao primeiro o seu sentido (sobre a instrumentalidade, ver
item anterior). Na fase instrumentalista, o processo passa ser objeto de estudo
de outras ciências jurídicas, como a sociologia do processo - que se concentrou
nos estudos sobre o acesso à justiça. Além disso, há grande preocupação com a
efetividade do processo, tema que não existia até então, e a tutela de novos
direitos, como os coletivos.
Parece mais adequado, porém, considerar a fase atual como
uma quarta fase da evolução do direito processual. Não obstante mantidas as
conquistas do processualismo e do instrumentalismo, a ciência teve de avançar,
e avançou.
Fala-se, então, de um Neoprocessualismo : o estudo e
aplicação do Direito Processual de acordo com esse novo modelo de repertório
teórico. Já há significativa bibliografia nacional que adota essa linha .
O termo Neoprocessualismo tem uma interessante função
didática, pois remete rapidamente ao Neoconstitucionalismo, que, não obstante a
sua polissemia, traz a reboque todas as premissas metodológicas apontadas, além
de toda produção doutrinária a respeito do tema, já bastante difundida.
Demais disso, o termo Neoprocessualismo também pode ser útil
por bem caracterizar um dos principais aspectos deste estágio metodológico dos
estudos sobre o direito processual: a revisão das categorias processuais (cuja
definição é a marca do processualismo do final do século XIX e meados do século
XX), a partir de novas premissas teóricas, o que justificaria o prefixo
"neo"5'.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), sob a
liderança de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, costuma-se denominar esta fase
do desenvolvimento do direito processual de formalismo-valorativo , exatamente
para destacar a importância que se deve dar aos valores constitucionalmente
protegidos na pauta de direitos fundamentais na construção e aplicação do
formalismo processual. As premissas deste pensamento são exatamente as mesmas
do chamado Neoprocessualismo, que, aliás, já foi considerado um formalismo
ético, na expressão de Rodriguez Uribes53. Embora seja correto afirmar que se
trate de uma construção teórica que nasce no contexto histórico do
Neoconstitucionalismo, o formalismo-valorativo pauta-se, também, no reforço dos
aspectos éticos do processo, com especial destaque para a afirmação do
princípio da cooperação (examinado no capítulo sobre as normas fundamentais do
processo civil), que é decorrência dos princípios do devido processo legal e da
boa-fé processual. Agrega-se, aqui, o aspecto da moralidade, tão caro a boa
parte dos pensadores "neoconstitucionalistas".
Este Curso segue essas premissas teóricas, com as
considerações críticas feitas acima, continuamente repisadas ao longo de toda a
obra.
7. A CIÊNCIA DO PROCESSO E A NOVA METODOLOGIA JURÍDICA
7.1. Constituição e processo. O art. 10 do CPC
A constitucionalização do Direito Processual é uma das
características do Direito contemporâneo. O fenômeno pode ser visto em duas
dimensões.
Primeiramente, há a incorporação aos textos constitucionais
de normas processuais, inclusive como direito fundamentais. Praticamente todas
as constituições ocidentais posteriores à Segunda Grande Guerra consagram
expressamente direitos fundamentais processuais. Os tratados internacionais de
direitos humanos também o fazem (Convenção Europeia de Direitos do Homem54 e o
Pacto de São José da Costa Rica são dois
exemplos paradigmáticos). Os principais exemplos são o direito fundamental ao
processo devido e todos os seus corolários (contraditório, juiz natural,
proibição de prova ilícita etc.), que serão examinados neste Curso. Ao devido
processo legal, que serve de parâmetro para a identificação de um modelo
constitucional brasileiro de processo jurisdicional, dedicar-se-á boa parte do
próximo capítulo.
De outro lado, a doutrina passa a examinar as normas
processuais infraconstitu- cionais como concretizadoras das disposições
constitucionais, valendo-se, para tanto, do repertório teórico desenvolvido
pelos constitucionalistas. Intensifica-se cada vez mais o diálogo entre
processualistas e constitucionalistas, com avanços de parte a parte. O aprimoramento
da jurisdição constitucional, em cujo processo se permite a intervenção do
amicus curiae (ver item no capítulo sobre intervenção de terceiro) e a
realização de audiências públicas56, talvez seja o exemplo mais conhecido57
Cabe uma pequena digressão sobre a relação entre as normas;
no caso, entre as normas processuais infraconstitucionais e as normas
constitucionais. A relação entre normas infraconstitucionais e normas
constitucionais não é puramente hierárquico. "o conteúdo da norma inferior
deve corresponder ao conteúdo da norma superior, assim e ao mesmo tempo que o
conteúdo da norma superior deve exteriorizar-se pelo conteúdo da norma
inferior (...) a eficácia, em vez de unidirecional, é recíproca".
Não é, então, por acaso que o art. 1° do CPC, com forte
caráter simbólico, está assim redigido: "O processo civil será ordenado,
disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se
as disposições deste Código".
Do ponto de vista normativo, o enunciado reproduz uma
obviedade: qualquer norma jurídica brasileira somente pode ser construída e
interpretada de acordo com a Constituição Federal. A ausência de dispositivo
semelhante no CPC não significaria, obviamente, que o CPC pudesse ser
interpretado em desconformidade com a Constituição.
O artigo enuncia a norma elementar de um sistema
constitucional: as normas jurídicas derivam da Constituição e devem estar em
conformidade com ela. Essa norma decorre do sistema de controle de
constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal.
Embora se trate de uma obviedade, é pedagógico e oportuno o
alerta de que as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas
sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que
possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando
em torno do princípio do devido processo legal, também de natureza
constitucional.
Ele é claramente uma tomada de posição do legislador no
sentido de reconhecimento da força normativa da Constituição.
E isso não é pouca coisa.
7.2. Princípios processuais
Atualmente, é muito frequente na literatura jurídica e na
jurisprudência brasileira a referência aos princípios processuais. Reconhece-se
a eficácia normativa direta de princípios processuais, tais como o princípio do
devido processo legal e o princípio da duração razoável do processo, examinados
mais à frente.
Princípio é espécie normativa. Trata-se de norma que
estabelece um fim a ser atingido59. Se essa espécie normativa visa a um
determinado "estado de coisas", e esse fim somente pode ser alcançado
com determinados comportamentos, "esses comportamentos passam a constituir
necessidades práticas sem cujos efeitos a progressiva promoção do fim não se
realiza"6^ Enfim, ainda com base no pensamento de Humberto Ávila: "os
princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização
de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um
estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários".
O princípio pode atuar sobre outras normas de forma direta
ou indireta6\
A eficácia direta de um princípio "traduz-se na atuação
sem intermediação ou interposição de outro (sub-)princípio ou regra".
Nesse plano, os princípios exercem uma função integrativa: permite-se agregar
elementos não previstos em subprincípios ou regras. A despeito da ausência de
previsão normativa expressa de um comportamento necessário à obtenção do estado
de coisas almejado, o princípio irá garanti-lo.
O exemplo citado por Humberto Ávila é bem interessante.
Imagine que se crie um procedimento sem a previsão para que uma parte se
manifeste sobre as alegações da outra. Não há regra expressa que, no caso,
concretize o princípio do devido processo legal, que, porém, garantirá
diretamente o direito de defesa.
A eficácia de um princípio do processo não depende de
intermediação por outras regras jurídicas, espalhadas topicamente na
legislação. O princípio da boa-fé processual, por exemplo, torna devidos os
comportamentos necessários à obtenção de um processo leal e cooperativo. Donde
se conclui que é possível conceber situações jurídicas processuais atípicas
(não expressamente previstas) decorrentes da eficácia direta com função integrativa
do princípio da boa-fé processual.
Há, porém, normas que servem à concretização dos princípios
processuais. Os meios para alcançar esse "estado de coisas", que o
princípio busca promover, podem ser típicos, determinados por subprincípios ou
por regras jurídicas, que servem para delimitar o exercício do poder e, assim,
conter a arbitrariedade da autoridade jurisdicional, na construção da solução
do caso que lhe for submetido.
Quando atuam com a "intermediação" de outras
normas, fala-se que os princípios têm uma eficácia indireta .
As normas que servem como "ponte", a intermediar a
eficácia do princípio, podem ser outros princípios (subprincípios) ou regras.
Um princípio do processo pode ser considerado um
subprincípio: norma menos ampla, que se relaciona a outro princípio mais amplo.
Um princípio pode, ainda, relacionar-se com regras, normas que em comparação a
ele são ainda menos amplas.
Os subprincípios exercem uma função definitória em relação
aos princípios (normas mais amplas, que podem ser designadas como
"sobreprincípios"): delimitam com maior precisão o comando normativo
estabelecido pelo sobreprincípio.
Assim, por exemplo, o princípio da boa-fé processual pode
ser encarado como um subprincípio do princípio do devido processo legal (nesta
relação, um sobreprincípio): o processo para ser devido (estado de coisas que
se busca alcançar) precisa ser cooperativo ou leal. Cabe lembrar, ainda, que os
princípios não têm pretensão de exclusividade66: um mesmo efeito jurídico
(direito a um processo efetivo, p. ex.) pode ser resultado de diversos
princípios (princípios do devido processo legal ou princípio da
inafastabilidade da jurisdição, ambos examinados neste volume do Curso). O
princípio da boa-fé, aqui examinado como um sobreprincípio, também pode ser
visto como um subprincípio dos sobreprincípios do devido processo legal ou da
segurança jurídica ou da dignidade da pessoa humana. Não há problema em relação
a isso. O princípio do devido processo legal pode ser considerado um
subprincípio do princípio do Estado de Direito ou do princípio de proteção da
dignidade da pessoa humana; pode, também ser considerado um sobreprincípio,
quando se relaciona com os princípios do contraditório ou da boa-fé processual.
Designar um princípio como sobre ou sub é apenas uma técnica
de demonstrar em que posição o princípio está em uma relação com outro
princípio.
As regras também exercem uma função definitória em relação
aos princípios, na medida em que "delimitam o comportamento que deverá ser
adotado para concretizar as finalidades estabelecidas pelos princípios'^ Assim,
por exemplo, é exigência do princípio do contraditório que o órgão
jurisdicional tenha o dever de dar oportunidade de a parte manifestar-se sobre
a demanda que lhe foi dirigida. Esclarece-se, assim, que o princípio do
contraditório garante o direito à defesa.
Os princípios exercem, ainda, em relação às normas menos
amplas, uma função interpretativa, "na medida em que servem para
interpretar normas construídas a partir de textos normativos expressos"
Não se admite uma interpretação de um texto normativo que dificulte ou impeça a
realização do fim almejado pelo princípio.
Os princípios exercem, enfim, uma função bloqueadora: servem
para justificar a não-aplicação de textos expressamente previstos que sejam
incompatíveis com o estado de coisas que se busca promover. Assim, por exemplo,
o princípio do devido processo legal serve para fundamentar a não-aplicação de
dispositivos normativos que permitam uma decisão judicial sem motivação.
Essa sistematização da teoria dos princípios serve, ainda,
para explicar porque o Código de Processo Civil atual não reproduziu o
enunciado do art. 126 do CPC/1973, que mencionava os "princípios gerais
do direito" como a última fonte de integração das lacunas legislativas.
Esse texto normativo era obsoleto. O juiz não decide a "lide" com
base na lei; o juiz decide a "lide" conforme o "Direito",
que se compõe de todo o conjunto de espécies normativas: regras e princípios.
Os princípios não estão "fora" da legalidade, entendida essa como o
Direito positivo: os princípios a compõem.
O CPC encampa claramente a teoria da força normativa dos
princípios jurídicos. O §2o do art. 489 do CPC esmiúça o dever de
fundamentação, no caso de o órgão julgador decidir por "ponderação de
normas"; a ponderação é usualmente relacionada ao caso de aplicação de
princípios colidentes.
7.3. A nova feição da atividade jurisdicional e o Direito
processual: sistema de precedentes, criatividade judicial e cláusulas gerais
processuais
A nova feição da atividade jurisdicional redesenhou o
Direito processual.
De um lado, estrutura-se um sistema de precedentes
judiciais, em que se reconhece eficácia normativa a determinadas orientações da
jurisprudência. A proliferação das "súmulas" dos tribunais e a
consagração da "súmula vinculante do STF" (art. 103-A, CF/1988) são
os exemplos mais ostensivos. A complexidade do sistema brasileiro de
precedentes judiciais será examinada no capítulo respectivo do v. 2 deste
Curso, para onde se remete o leitor.
A criatividade da função jurisdicional é também
característica atualmente bem aceita pelo pensamento jurídico contemporâneo. O
tema será examinado em item próprio no capítulo sobre jurisdição, neste volume
do Curso, para onde se remete o leitor.
Além disso, há as cláusulas gerais processuais.
Cláusula geral é uma espécie de texto normativo, cujo
antecedente (hipótese fática) é composto por termos vagos e o consequente
(efeito jurídico) é indeterminado. Há, portanto, uma indeterminação legislativa
em ambos os extremos da estrutura lógica normativa7'. Há várias concepções
sobre as cláusulas gerais. Optamos por essa para fins didáticos, além de a
considerarmos a mais adequada, mas não se ignora a existência de outras.
A técnica das "cláusulas gerais" contrapõe-se à
técnica casuística72 Não há sistema jurídico exclusivamente estruturado em
cláusulas gerais (que causariam uma sensação perene de insegurança a todos) ou
em regras casuísticas (que tornariam o sistema sobremaneira rígido e fechado,
nada adequado à complexidade da vida contemporânea). Uma das principais
características dos sistemas jurídicos contemporâneos é exatamente a
harmonização de enunciados normativos de ambas as espécies11.
É indiscutível que a existência de cláusulas gerais reforça
o poder criativo da atividade jurisdicional. O órgão julgador é chamado a
interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da
solução de problemas concretos que lhe são submetidos.
O método da subsunção do fato ao enunciado normativo,
próprio e útil para os casos de textos normativos típicos e fechados, revela-se
insuficiente para a aplicação de cláusulas gerais. As cláusulas gerais exigem
concretização em vez de subsunção. "Na apreciação do caso concreto, o juiz
não tem apenas de 'generalizar' o caso; tem também de 'individualizar' até
certo ponto o critério; e precisamente por isso, a sua actividade não se esgota
na 'subsunção'. Quanto 'mais complexos' são os aspectos peculiares do caso a
decidir, 'tanto mais difícil e mais livre se torna a actividade do juiz, tanto
mais se afasta da aparência da mera subsunção".
O Direito passa a ser construído a posteriori, em uma mescla
de indução e dedução76, atento à complexidade da vida, que não pode ser
totalmente regulada pelos esquemas lógicos reduzidos de um legislador que pensa
abstrata e aprioristicamente77^ As cláusulas gerais servem para a realização
da justiça do caso concreto; revelam-se, em feliz metáfora doutrinária, como
"pontos de erupção da equidade'^
A relação entre cláusula geral e o precedente judicial é
bastante íntima. Já se advertiu, a propósito, que a utilização da técnica das
cláusulas gerais aproximou o sistema do civil law do sistema do common law.
Esta relação revela-se, sobretudo, em dois aspectos. Primeiramente, a cláusula
geral reforça o papel da jurisprudência na criação de normas gerais: a
reiteração da aplicação de uma mesma ratio decidendi (núcleo normativo do
precedente judicial; sobre a ratio decidendi, ver o capítulo sobre precedente
judicial no v. 2 deste Curso) dá especificidade ao conteúdo normativo de uma
cláusula geral, sem, contudo, esvaziá-la; assim ocorre, por exemplo, quando se
entende que tal conduta típica é ou não exigida pelo princípio da boa-fé7^ Além
disso, a cláusula geral funciona como elemento de conexão, permitindo ao juiz
fundamentar a sua decisão em casos precedentemente julgados.
As cláusulas gerais desenvolveram-se inicialmente no âmbito
do Direito Privado, cujos principais exemplos são as cláusulas gerais da
boa-fé, da função social da propriedade e da função social do contrato.
Ultimamente, porém, as cláusulas gerais têm
"invadido" o Direito processual, que naturalmente sofreu as
consequências das transformações da metodologia jurídica no século passados\
Afinal, o Direito processual também necessita de "normas flexíveis que
permitam atender às especiais circunstâncias do caso concreto".
O devido processo legal é o principal exemplo de cláusula
geral processual. O CPC brasileiro contém outros vários exemplos de cláusulas
gerais: a) cláusula geral de promoção pelo Estado da autocomposição (art. 30,
§10); b) cláusula geral da boa-fé processual (art. 5°); c) cláusula geral de
cooperação (art. 60); d) cláusula geral de negociação sobre o processo (art.
190); e) poder geral de cautela (art. 301; f) cláusulas gerais executivas
(arts. 297, caput, e 536, § 10); g) cláusula geral do abuso do direito pelo
exequente (art. 8os); h) cláusula geral de adequação do processo e da decisão
em jurisdição voluntária (art. 723, par. ún.) etc.
A existência de várias cláusulas gerais rompe com o
tradicional modelo de tipicidade estrita que estruturava o processo até meados
do século XX.
A produção doutrinária e as manifestações jurisprudenciais
sobre as cláusulas gerais são quase infinitas. Notadamente na Alemanha, há um
vastíssimo número de ensaios doutrinários a respeito do tema. Tudo isso
contribuiu para que as cláusulas gerais fossem aplicadas de maneira
dogmaticamente aceitável e, consequentemente, de modo a que se pudessem
controlar as decisões judiciais que nelas se baseassem.
O operador jurídico não pode prescindir desses subsídios na
aplicação das cláusulas gerais processuais, atualmente tão abundantes.
7.4. Processo e direitos fundamentais
Atualmente, para além de princípios ou regras processuais
previstos no art. 5° da CF/1988, fala-se em direitos fundamentais processuais.
Vejamos a observação de Marcelo Lima Guerra:
" ...o uso de terminologias como 'garantias' ou
'princípios' pode ter o inconveniente de preservar aquela concepção das normas
constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, que não
reconhece a plena força positiva de tais normas, em suma, a sua aplicação
imediata. Dessa forma, revela-se extremamente oportuno procurar substituir
essas expressões terminológicas pela de 'direitos fundamentais', de modo a
deixar explicitado a adoção desse novo marco teórico-dogmático que constitui o
cerne do constitucionalismo contemporâneo, a saber, a teoria dos direitos
fundamentais".
A observação é importante.
Os direitos fundamentais têm dupla dimensão: a) subjetiva:
de um lado, são direitos subjetivos, que atribuem posições jurídicas de
vantagem a seus titulares; b) objetiva: traduzem valores básicos e consagrados
na ordem jurídica, que devem presidir a interpretação/aplicação de todo
ordenamento jurídico, por todos os atores jurídicos. Trata-se de encarar o
direito fundamental como norma jurídica (dimensão objetiva) ou como situação
jurídica ativa (dimensão subjetiva).
"Por um lado, no âmbito de cada um dos direitos
fundamentais, em volta deles ou nas relações entre eles, os preceitos
constitucionais determinam espaços normativos, preenchidos por valores ou
interesses humanos afirmados como bases objectivas de ordenação da vida social.
Por outro lado, a dimensão objectiva também é pensada como
estrutura produtora de efeitos jurídicos, enquanto complemento e suplemento da
dimensão subjectiva, na medida em que se retiram dos preceitos constitucionais
efeitos que não se reconduzem totalmente às posições jurídicas subjectivas que
reconhecem, ou se estabelecem deveres e obrigações, normalmente para o Estado,
sem a correspondente atribuição de 'direitos' aos indivíduos".
Assim, o processo deve estar adequado à tutela efetiva dos
direitos fundamentais (dimensão subjetiva) e, além disso, ele próprio deve ser
estruturado de acordo com os direitos fundamentais (dimensão objetiva^
No primeiro caso, as regras processuais devem ser criadas de
maneira adequada à tutela dos direitos fundamentais (daí, por exemplo, o §10 do
art. 536 do CPC permitir ao magistrado a determinação de qualquer medida
executiva para efetivar a sua decisão, escolhendo-a à luz das peculiaridades do
caso concreto). No segundo caso, o legislador deve criar regras processuais
adequadas aos direitos fundamentais, aqui encarados como normas, respeitando,
por exemplo, a igualdade das partes e o contraditório.
As normas que consagram direitos fundamentais têm aplicação
imediata (art. 5°, § 1°, CF/1988), obrigando o legislador a criar normas
processuais em conformidade com elas e, ainda, adequadas à tutela das situações
jurídicas ativas (principalmente os direitos fundamentais).
Sucede que as normas relativas a direitos fundamentais
também obrigam o magistrado, que deverá proceder ao controle de
constitucionalidade difuso das normas processuais quando, em um caso concreto,
perceber que uma delas viola a pauta normativa constitucional. Daí surge o
princípio da adequação judicial das normas processuais, que está intimamente
relacionado ao controle de constitucionalidade das leis no momento da aplicação
(controle incidental e concreto) e à teoria dos princípios e dos direitos
fundamentais, que pregam a eficácia imediata e direta dessas normas.
Encaradas as normas constitucionais processuais como
garantidoras de verdadeiros direitos fundamentais processuais, e tendo em vista
a dimensão objetiva já mencionada, tiram-se as seguintes consequências: a) o
magistrado deve compreender esses direitos como se compreendem os direitos
fundamentais, ou seja, de modo a dar-lhes o máximo de eficácia; b) o magistrado
afastará, aplicada a máxima da proporcionalidade, qualquer regra que se coloque
como obstáculo irrazoável/ desproporcional à efetivação de um direito
fundamental; c) o magistrado deve levar em consideração, "na realização de
um direito fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a
outros direitos fundamentais'^
8. APLICAÇÃO DA NORMA PROCESSUAL NO TEMPO
As normas processuais novas aplicam-se aos processos
pendentes (arts. 14 e 1.046, CPC).
O art. 14 é mais completo, pois ressalva que a aplicação
imediata da nova norma processual deve respeitar "os atos processuais
praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma
revogada".
O dispositivo é muito bem escrito. Ele esclarece que não há
nada de especial na aplicação de uma norma processual. A peculiaridade (se de
fato existe alguma) é que o processo é uma realidade fática e jurídica bem
complexa. O processo é um complexo de fatos jurídicos e de situações jurídicas,
conforme demonstramos em item anterior.
O processo é uma espécie de ato jurídico. Trata-se de um ato
jurídico complexo. Enquadra-se o processo na categoria "ato-complexo de
formação sucessiva": os vários atos que compõem o tipo normativo
sucedem-se no tempo, porquanto seja um conjunto de atos jurídicos (atos
processuais), relacionados entre si, que possuem como objetivo comum, no caso
do processo judicial, a prestação jurisdicional.
Cada ato que compõe o processo é um ato jurídico que merece
proteção. Lei nova não pode atingir ato jurídico perfeito (art. 50, XXXVI,
CF/1988), mesmo se ele for um ato jurídico processual. Por isso o art. 14 do
CPC determina que se respeitem "os atos processuais praticados".
Dois exemplos: a) recurso de agravo de instrumento
interposto antes da vigência do novo CPC, em hipótese para a qual hoje não é
cabível esse recurso, permanecerá pendente e deverá ser julgado - a regra nova
não pode atingir um ato jurídico perfeitamente praticado nos termos da
legislação anterior; b) arrematação perfeita ao tempo do código revogado, não
pode agora ser desfeita por conta da aplicação de regra nova, como a que
decorre do art. 891, parágrafo único.
Mas o processo também pode ser encarado como um efeito
jurídico.
Nesse sentido, processo é o conjunto das relações jurídicas
que se estabelecem entre os diversos sujeitos processuais (partes, juiz,
auxiliares da justiça etc.). Essas relações jurídicas processuais formam-se em
diversas combinações: autor-juiz, autor-réu, juiz-réu, autor-perito,
juiz-órgão do Ministério Público etc.
Repita-se o que se disse acima: o termo "processo"
serve, então, tanto para designar o ato processo como a relação jurídica que
dele emerge.
Há direitos processuais; direitos subjetivos processuais e
direitos potestativos processuais - direito ao recurso, direito de produzir uma
prova, direito de contestar etc. O direito processual é uma situação jurídica
ativa. Uma vez adquirido pelo sujeito, o direito processual ganha proteção
constitucional e não poderá ser prejudicado por lei. Lei nova não pode atingir
direito adquirido (art. 5°, XXXVI, CF/1988), mesmo se for um direito adquirido
processual.
Por isso o art. 14 do CPC determina que se respeitem
"as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma
revogada".
Dois exemplos.
a) Publicada a
decisão, surge, para o vencido, o direito ao recurso. Se a decisão houver sido
publicada ao tempo do Código revogado e contra ela coubessem, por exemplo,
embargos infringentes (recurso que deixou de existir), a situação jurídica
ativa "direito aos embargos infringentes" se teria consolidado; essa
situação jurídica tem de ser protegida. Assim, mesmo que o novo CPC comece a
viger durante a fluência do prazo para a parte interpor os embargos infringentes,
não há possibilidade de a parte perder o direito a esse recurso, pois se trata
de uma situação jurídica processual consolidada.
b) No CPC revogado, o Poder Público possuía prazo em
quádruplo para contestar; no CPC atual, o prazo é dobrado. Com a citação, surge
a situação jurídica "direito à apresentação da defesa". Assim, mesmo
que o novo CPC comece a viger durante a fluência do prazo apresentação da
contestação, que se iniciou na vigência do código passado, será garantido ao
Poder Público o prazo em quádruplo.
A aplicação imediata da norma processual não escapa à
determinação constitucional que impede a retroatividade da lei para atingir ato
jurídico perfeito e direito adquirido.
Nada há de especial, no particular.
9. A TRADIÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA: NEM CIVIL LAW NEM COMMON
LAW
Costuma-se afirmar que o Brasil é país cujo Direito se
estrutura de acordo com o paradigma do civil law, próprio da tradição jurídica
romano-germânica, difundida na Europa continental.
Não parece correta essa afirmação tão peremptória.
O sistema jurídico brasileiro tem uma característica muito
peculiar, que não deixa de ser curiosa: temos um direito constitucional de
inspiração estadunidense (daí a consagração de uma série de garantias
processuais, inclusive, expressamente, do devido processo legal) e um direito
infraconstitucional (principalmente o direito privado) inspirado na família
romano-germânica (França, Alemanha e Itália, basicamente). Há controle de
constitucionalidade difuso (inspirado no judicial review estadunidense) e concentrado
(modelo austríaco). Há inúmeras codificações legislativas (civil law) e, ao
mesmo tempo, constrói-se um sistema de valorização dos precedentes judiciais
extremamente complexo (súmula vinculante, súmula impeditiva, julgamento modelo
para causas repetitivas etc.; sobre o tema, ver o capítulo respectivo no v. 2
deste Curso), de óbvia inspiração no common law. Embora tenhamos um direito
privado estruturado de acordo com o modelo do direito romano, de cunho
individualista, temos um microssistema de tutela de direitos coletivos dos mais
avançados e complexos do mundo; como se sabe, a tutela coletiva de direitos é
uma marca da tradição jurídica do common law (sobre a tutela de direitos
coletivos, no Brasil, cf. o v. 4 deste Curso).
Reforçando a tese de que a tradição jurídica brasileira é,
no mínimo, peculiar, eis o art. 386 do Decreto n. 848/1890, um dos atos
normativos que inaugurou a nossa República: "Constituirão legislação
subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e
commercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto.
Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações
juridicas na República dos Estados Unidos da America do Norte, os casos de
common law e equity, serão tambem subsidiarios da jurisprudencia e processo
federal".
Este Decreto estruturava a justiça Federal e regulamentava o
seu processo jurisdicional - à época, União e Estados possuíam competência
legislativa em matéria processual. O curioso é que a Lei n. 5^10/1966, que
reestruturou a justiça Federal, não possui enunciado semelhante, muito menos
possui texto incompatível com esse antigo dispositivo. Ainda mais curioso é que
este Decreto foi expressamente revogado por um Decreto n. 11 de 1991 (art. 40)
- mais de cem anos depois, portanto; e este Decreto n. 11/1991 também foi
revogado (revogou-se o decreto que revogava), sem ressalva alguma, pelo Decreto
n. 761/1993. Interessante é que, em 1891, o Decreto n. 848/1890 equivalia a uma
lei; o Decreto presidencial de 1991 já não possuía esta natureza. Assim,
poderia o segundo revogar o primeiro.? Bem, de todo modo, a vigência formal por
mais de cem anos deste dispositivo é um dado histórico que não pode ser
ignorado.
A identificação de uma tradição jurídica não se faz apenas
com a análise do sistema jurídico. É preciso investigar também o papel e a
relevância dos operadores jurídicos e o modo como se ensina o Direito. No
Brasil, embora a importância da opinião dos doutrinadores ainda seja bem
significativa (característica do civil law), o destaque que se tem atribuído à
jurisprudência (marca do common law) é notável, de que serve de exemplo a
súmula vinculante do STF. Não obstante o nosso ensino jurídico se tenha
inspirado no modelo da Europa Continental (principalmente de Coimbra), não se
desconhecem atualmente inúmeros cursos de Direito que são es-truturados a
partir do exame de casos, conforme a tradição do common law.
Os problemas jurídicos repetem-se nos mais diversos recantos
do mundo. O ser humano é muito parecido, seja ele japonês, norte-americano,
índio, judeu, ateu, brasileiro. A solução desses problemas variará, obviamente,
conforme os modelos teóricos e os aspectos culturais de cada país. Assim, por
exemplo, os problemas relacionados à boa-fé processual são resolvidos nos
Estados Unidos pela cláusula do devido processo legal; na Alemanha, pela
expansão do § 242 do BGB (Código Civil alemão) aos "domínios
não-civis", e assim sucessivamente.
Muitas vezes, a discussão doutrinária é puramente
terminológica. A questão da ilicitude do comportamento contraditório, por
exemplo, foi, na Alemanha, resolvida pelo desenvolvimento da proibição do
venire contra factum proprium; na Espanha e na Argentina, pela doctrina de los
actos propios; e nos países do common law, pelo estoppel. Já se disse,
inclusive, que a construção do venire contra factum proprium é um "common
law wine in civil law bottles" Trata-se da mesma solução, com nomes e
pressupostos teóricos diversos.
A observação é muito importante.
O Direito brasileiro, como seu povo, é miscigenado. E isso
não é necessariamente ruim. Não há preconceitos jurídicos no Brasil: busca-se
inspiração nos mais variados modelos estrangeiros, indistintamente. Um exemplo
disso é o sistema de tutela de direitos coletivos: não nos consta que haja em
um país de tradição romano-germânica um sistema tão bem desenvolvido e que,
depois de quarenta anos, tenha mostrado bons resultados concretos (sobre o
processo coletivo, conferir o v. 4 deste Curso). A experiência jurídica
brasileira parece ser única; é um paradigma que precisa ser observado e mais
bem estudado92
O pensamento jurídico brasileiro opera (tem de operar), com
alguma desenvoltura, com marcos teóricos e metodológicos desses dois grandes
modelos de sistema jurídico.
Um exemplo talvez seja útil para compreender a importância
desta constatação.
Há, no Brasil, robusta produção doutrinária e vasta
jurisprudência sobre o devido processo legal e a boa-fé objetiva. Operamos, sem
maiores percalços, com institutos de origens diversas (o primeiro, common law,
o segundo, civil law). O pensamento jurídico brasileiro começa, inclusive, a
ganhar autonomia, desvinculan- do-se de sua ascendência, como demonstra a
concepção brasileira sobre o devido processo legal substancial (examinada no
capítulo sobre o devido processo legal, mais à frente), bem diferente da visão
original estadunidense. A própria vinculação entre a boa-fé processual e o
devido processo legal (também examinada no capítulo sobre o devido processo
legal) é uma construção teórica brasileira, original e muito profícua.
Enfim, para bem compreender o Direito processual civil
brasileiro contemporâneo não se pode ignorar essa circunstância: é preciso
romper com o "dogma da ascendência genética", não comprovado
empiricamente, segundo o qual o Direito brasileiro se filia a essa ou àquela
tradição jurídica.
Temos uma tradição jurídica própria e bem peculiar, que,
como disse um aluno em sala de aula, poderia ser designada, sem ironia ou
chiste, como o brazilian law.
(DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil.
Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento.
17 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2015, p. 29-60)