quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

TRT 15.ª Região - Empresa que aliciava trabalhadores do Nordeste é condenada a pagar multa de R$ 300 mil

Valor será revertido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)

Trabalhadores não tinham alojamento em condições
dignas e, em alguns casos, nem mesmo alimentação

Por Ademar Lopes Junior

R.O.M. residia em Mossoró (RN). Foi convidado, por telefone, por um funcionário da empresa de engenharia que atende ao setor petrolífero, a vir para São José dos Campos, porque a empresa estava precisando de trabalhador. Comprou passagem de ônibus (do próprio bolso) e chegou à cidade em 5 de janeiro de 2009. Ficou aguardando a contratação num alojamento da empresa, onde dividiu espaço com outros trabalhadores como ele, muitos vindos de outros estados. A admissão aconteceu só um mês e meio depois (19 de fevereiro), e o período em que trabalhou foi curto (até 2 de março), quando foi demitido sem justa causa. Assinou três atestados de saúde ocupacional, porque sempre era chamado pela empresa para retificar um anteriormente assinado. Não recebeu nenhum salário durante o tempo em que aguardava a contratação, nem tampouco os valores que gastou nas passagens de ida e volta para sua cidade.

J.V.F. soube da vaga de montador de andaimes pela internet e fez contato telefônico com a empresa em São José dos Campos, tendo sido atendido por um funcionário que o orientou sobre a existência da vaga e solicitou o seu comparecimento na empresa no dia 4 de janeiro de 2009. O funcionário prometeu ao trabalhador o reembolso da passagem de ida e volta. A viagem de dois dias de ônibus foi feita da Bahia a São José dos Campos, por conta do próprio interessado no trabalho. Já na cidade, dirigiu-se ao alojamento. Passou por todo o processo de integração e exames médicos, que se iniciaram no dia 8 de janeiro e terminaram em 15 de janeiro. A CTPS do depoente, porém, foi registrada apenas em 12 de fevereiro, por um período de experiência de 30 dias, prorrogável por mais 30 dias. Só depois da assinatura da carteira é que o trabalhador pôde se dirigir ao hotel. A empresa não fornecia transporte nem pagamento do vale-transporte aos empregados, o que os obrigava a deslocar-se aos locais de trabalho a pé ou arcando com o transporte com recursos próprios. Em 2 de março, o trabalhador recebeu aviso prévio da empresa solicitando seu comparecimento para acertos rescisórios em 11 de março. Ele sabia que seus colegas de trabalho haviam recebido cerca de R$ 350 e não tiveram as passagens reembolsadas. Também sabia que aqueles que se recusavam a assinar os termos de rescisão eram obrigados a deixar o hotel ou o alojamento à força. Ele sabia que existiam cerca de mil trabalhadores na mesma situação, seja no hotel, seja no alojamento, e que periodicamente a empresa realizava testes com os trabalhadores nas cidades de Candeias e Camaçari e fretava ônibus para trazer os candidatos aprovados na seleção, recomeçando o processo.

L.S.N. mora em Candeias (BA), cidade próxima ao polo petroquímico de Camaçari, cidade onde é constantemente divulgada (boca a boca) a contratação, pelas empreiteiras que prestam serviço à Petrobras, de empregados para o trabalho nas obras da estatal em outros estados. Soube do emprego por alguns colegas de profissão. Ele deveria procurar em São José dos Campos o supervisor A., também conhecido por um apelido. Esse supervisor, segundo o reclamante, trouxe uma equipe de trabalhadores da Bahia para São José dos Campos, mas cada interessado ficou responsável por arrumar o dinheiro da passagem, que depois seria reembolsado pela empresa. O supervisor lhe disse também que ele ficaria num hotel, com alimentação inclusa, e só por isso o trabalhador aceitou a proposta, chegando a São José dos Campos no dia 2 de dezembro de 2008. Quando chegou à cidade, foi colocado num alojamento constituído de galpões rodeados de mato. Ali ficou por 12 dias e encontrou cobra, muitos insetos e sapos. Além dos bichos, o local é perigoso, por ser constantemente rodeado por ladrões, segundo L.S.N., e é comum o pessoal alojado falar de assaltos. Diante das condições precárias, temeu por sua vida e procurou a empresa, que nada fez a respeito. Então, alugou um quarto para morar, à sua custa, porém não teve mais como pagar, pois nada recebeu da empresa. Três meses depois de chegar a São José dos Campos ainda não tinha sido contratado, apesar de já ter feito todos os exames médicos solicitados pela empresa. O departamento de Recursos Humanos da reclamada se limitou a dizer que deveria aguardar um contato telefônico. Não recebeu o dinheiro de sua passagem da Bahia para São José dos Campos, não recebeu nenhuma ajuda financeira da empresa desde que chegou, e, por ter saído do alojamento (que estava em péssimas condições, noticiadas inclusive por veículos de imprensa importantes do Vale do Paraíba), não teve direito a alimentação, que só era fornecida no alojamento (os que saíam de lá não podiam ir ao local apenas para comer). O trabalhador tem família com três filhos (todos menores). Por não receber nada desde que chegou à cidade, e com gastos que não esperava ter ante as promessas do supervisor que o trouxe da Bahia, passou por dificuldades que muito o constrangeram.

A.V.S.F. é do Piauí e soube da vaga de trabalho por meio de um supervisor da empresa, conhecido seu de muitos anos, e que mandou o seu nome para o sistema da Petrobras e disse-lhe para comprar passagem para São José dos Campos, cujo valor depois seria reembolsado pela empresa. Chegou à cidade em 26 de fevereiro e foi recebido na empresa pelo encarregado, que também já o conhecia, pois haviam trabalhado juntos por três vezes. O encarregado o encaminhou para os exames médicos, e nada foi constatado. Depois, foi encaminhado para fazer o treinamento no escritório da empresa e abriu conta bancária para o recebimento de salários. Ficou até o dia 4 de março hospedado no alojamento mantido pela empresa, inclusive alimentando-se no local. Depois do dia 4 foi transferido para uma pousada, à custa da empresa, sob o argumento de que nesse alojamento só ficariam os empregados já contratados. No dia 25 de março recebeu a notícia de que não seria contratado, pois não tinha escolaridade suficiente para o cargo. Ele tinha vindo para trabalhar como mecânico montador, função já desempenhada em áreas da Petrobras por vários anos. Dois funcionários da reclamada disseram-lhe que ele receberia a importância de R$ 50 e mais a passagem de volta para o Piauí, que não lhe dariam a passagem em dinheiro, mas o próprio bilhete para embarque, e que não pagariam a passagem de vinda, pois ele não tinha sido chamado pela empresa.

O que essas quatro histórias têm em comum? O Ministério Público do Trabalho, que ouviu esses quatro depoimentos, colheu no inquérito civil fartos elementos de convicção da existência de efetiva lesão a direitos metaindividuais. Os candidatos a vagas de trabalho na obra administrada pela empresa em São José dos Campos eram, em sua maioria, oriundos de localidades muito distantes, mas todos foram aliciados por prepostos da empresa ou, após demonstrarem interesse nas vagas, foram convidados para participar do processo seletivo com a promessa de fornecimento de transporte, alojamento e alimentação ou ressarcimento dessas despesas. Todas essas comprovações foram expostas na ação civil pública, na 5ª Vara do Trabalho de São José dos Campos.

Para confrontar esses elementos, a empresa sustentou, em sua defesa, “a licitude do moroso processo seletivo que procedia”, alegando que, em face das normas severas de segurança da refinaria e das peculiaridades dos serviços buscados, tinha que fazer “um cuidadoso e longo processo seletivo, que envolvia entrevistas, provas escritas, provas práticas e integração dentro da refinaria”. Também negou a existência de aliciamento de trabalhadores, afirmando que eles “ficavam sabendo das vagas de emprego através de parentes e amigos”. Mas afirmou que “por mera liberalidade, fornecia acomodação aos candidatos, cumprindo sua função social, eis que não há norma no ordenamento jurídico que obrigue a empresa a custear moradia, alimentação e transporte a candidatos de processo seletivo”.

Três testemunhas da empresa foram ouvidas. Apesar de terem sido levadas para “corroborar a tese de licitude no procedimento de contratação da ré”, acabaram, indiretamente, demonstrando a injustificada morosidade na contratação de trabalhadores oriundos de localidades longínquas.

O Ministério Público do Trabalho requereu o pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 1 milhão (a serem revertidos integralmente ao Fundo de Amparo ao Trabalhador), por parte da empresa, devido a todas as irregularidades por ela cometidas.

O juízo de primeira instância entendeu que “restaram sem comprovação as acusações de aliciamento de trabalhadores, descumprimento de normas relativas à saúde, higiene, conforto e segurança dos trabalhadores, não sendo detectado qualquer dano aos empregados da ré, não havendo fundamento legal para que se obste a empresa de contratar funcionários em outros locais ou exigir certidão liberatória de transporte de trabalhadores a ser fornecida pela Polícia Rodoviária Federal ou Estadual”. Também afirmou que “não há provas de contratação de trabalhadores em outras localidades para se impor à ré o fornecimento de alimentação e pouso”. Na sentença, julgou “improcedente a ação, condenando a União nas custas processuais, calculadas sobre o valor da causa, R$ 1 milhão, no importe de R$ 20 mil, isenta do recolhimento nos termos do Artigo 1º, inciso VI, do Decreto-Lei nº 779/1969”.

No recurso do Ministério Público do Trabalho, julgado pela 5ª Câmara do TRT da 15ª Região, o relator do acórdão, desembargador Lorival Ferreira dos Santos, afirmou que “o julgador, ao fundamentar a sua decisão, louvou-se nos depoimentos testemunhais colhidos no processo, os quais, segundo ele, não retratariam o quadro fático ventilado na exordial. Contudo tal julgador não levou em consideração os elementos de convicção produzidos no inquérito civil público”. O acórdão ressaltou que “o inquérito civil é um procedimento administrativo de natureza inquisitorial destinado a apurar a ocorrência de lesão ou ameaça de lesão a interesses e direitos metaindividuais, servindo como preparação para o exercício das atribuições inerentes às funções institucionais do Ministério Público”. Por isso, o inquérito “não se submete aos princípios da ampla defesa e do contraditório, previstos no inciso LV do artigo 5º da Constituição da República”. A decisão colegiada lembrou ainda que “os atos administrativos que compõem o inquérito civil gozam de presunção de legitimidade e veracidade. Isso porque se trata de investigação de natureza pública e de caráter oficial, presidida por agente público, no exercício de verdadeiro munus publico, sendo, portanto, os seus atos realizados em observância aos princípios da legalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, da Constituição Federal), com destaque para o fato de que o Ministério Público foi alçado constitucionalmente a instituição permanente, essencial à função jurisdicional, a quem cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF/88, artigo 127)”.

O acórdão salientou que “é forçoso reconhecer que, no presente caso, restou comprovada a conduta ilícita praticada pela ré e a continuidade dessa conduta, apesar das penalidades administrativas recebidas e, até mesmo, após ordem judicial prolatada em dissídio coletivo para que procedesse à contratação de trabalhadores mantidos em alojamentos em condições precárias, circunstâncias essas que tornam a tutela inibitória plenamente justificável, a fim de coibir a continuidade ou a repetição do ilícito”. E afirmou também que, por isso, “deve ser acolhido o inconformismo recursal para condenar a reclamada a abster-se de aliciar ou de aceitar trabalhadores oriundos de localidades longínquas do território nacional (mais de 200 quilômetros da sede da empresa) para participação de processo seletivo para preenchimento de vagas, sem que lhes sejam assegurados transporte, alimentação e alojamento gratuitos e em condições condignas e com a garantia de que o processo seletivo não poderá perdurar por mais de cinco dias, além da garantia de concessão, aos não aprovados na seleção, de imediato transporte gratuito de retorno à cidade de origem em condições adequadas”.

O acórdão afirmou que “há previsão legal de cominação de multa para coibir a desobediência às obrigações judiciais impostas, não se configurando bis in idem com as multas administrativas aplicadas, na medida em que não se está punindo um ato passado, mas buscando a prevenção de uma lesão futura”. A decisão colegiada estabeleceu o pagamento de multa diária pelo descumprimento das obrigações impostas, fixada em valor de R$ 5 mil por trabalhador prejudicado, reversível ao FAT.

Quanto ao dano moral coletivo pedido pelo Ministério Público, o acórdão entendeu que “restou inequívoco que o procedimento adotado pela ré para contratação de trabalhadores tinha o intuito de fraudar a legislação trabalhista, violando direitos fundamentais de determinado grupo de trabalhadores, com sua submissão a tratamento desumano ou degradante, em afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, incisos III e IV, da Constituição da República)” e concluiu que “tal comportamento causou lesão à esfera moral da comunidade de trabalhadores e também da própria população da cidade de São José dos Campos, eis que essa última ficou sujeita à marginalização dos trabalhadores migrantes naquela localidade, que ficavam à mercê de sua própria sorte, sem qualquer espécie de ajuda da empresa-ré”.

Em conclusão, a decisão da 5ª Câmara afirmou que “é devido o deferimento de indenização a tal título” e arbitrou “o valor de R$ 300 mil a título de indenização por dano moral coletivo, sopesando a gravidade da lesão e as condições econômicas e sociais da ofensora, devendo esse valor ser integralmente revertido a favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)”. (Processo 0054200-92.2009.5.15.0132 RO)





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