sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lei seca: A lei que foi um porre

Para acabar com os problemas sociais, os Estados Unidos decidiram banir as bebidas alcoólicas. Em vigor de 1920 a 1933, a Lei Seca se provou um fracasso retumbante - e fez a alegria da máfia

por Felipe Van Deursen
Ex-jogador de beisebol, o reverendo Billy Sunday era um dos religiosos mais populares dos Estados Unidos. Conhecido por seus eloqüentes discursos, ele adotou um tom épico naquele 16 de janeiro de 1920. A platéia de 10 mil fiéis, na cidade de Norfolk, ficou radiante. “O reino das lágrimas acabou. As favelas logo serão memória. Vamos fazer de nossas prisões fábricas e das cadeias armazéns. Homens caminharão eretos, mulheres vão sorrir e as crianças darão risadas.” No mesmo dia, a Constituição americana ganhara sua 18ª emenda, proibindo a fabricação, o comércio, o transporte, a importação e a exportação de bebidas alcoólicas. Era a Lei Seca, adotada com o objetivo de salvar o país de problemas que iam da pobreza à violência. Sunday e muitos outros americanos acreditavam que todos esses males tinham apenas uma raiz: o álcool.
Válida por 13 anos, a emenda se tornou um dos maiores fracassos legislativos de todos os tempos. Em vez de acabar com os problemas sociais atribuídos à bebida, a Lei Seca fez o contrário. A medida desmoralizou as autoridades e foi um estímulo à corrupção. Cidades como Chicago e Nova York viram a criminalidade explodir, enquanto a máfia enriquecia com o contrabando de álcool.
Em todo o país, movimentos contra as bebidas existiam desde o século 19. A campanha ganhou escala nacional e, em dezembro de 1917, o Congresso aprovou a 18ª emenda. Em pouco mais de um ano, ela foi ratificada pela maioria dos estados, o que garantiu sua entrada em vigor em 1920. O texto instituía o Ato de Proibição Nacional, também chamado de Ato de Volstead (homenagem a Andrew Volstead, deputado que liderou a iniciativa). Era considerada “intoxicante” qualquer bebida que tivesse mais de 0,5% de álcool (as cervejas mais fracas têm cerca de 2%).
Mas por que a nação mais poderosa do mundo deu tanta importância para as bebidas a ponto de proibi-las? Boa parte da resposta parece estar no protestantismo predominante nos Estados Unidos, que inclui a idéia do “Destino Manifesto”: os americanos seriam o povo eleito por Deus para guiar o mundo. Para manter a nação no caminho certo, a sobriedade deveria ser estabelecida por decreto. “Se a honra do grupo depende de todos, o pecado individual pode arrastar a todos”, diz Leandro Karnal, professor de História da América da Universidade Estadual de Campinas.
Apesar de ter o apoio de muitos setores da sociedade, a Lei Seca foi ignorada por milhões de americanos. Não importava a classe social: quem queria beber – o que era permitido, mas, em tese, impossibilitado pela lei – dava um jeitinho. Muitos iam para o Canadá e voltavam com caminhonetes e lanchas cheias de bebida. Outros faziam no quintal o próprio uísque. Havia ainda quem se passasse por padre ou médico para obter litros de vinho sacramental ou de destilados medicinais (que tinham uso controlado). Logo essa demanda começaria a ser atendida de forma organizada. Eram os gângsteres – em sua maioria, imigrantes vindos de países como Itália e Irlanda. Antes da Lei Seca, esses mafiosos viviam do jogo e da prostituição. Passaram então a dominar também os milionários negócios com bebidas, corrompendo policiais, elegendo políticos e matando seus concorrentes.
Em Nova York, o principal mafioso era o siciliano Joseph Bonanno – apontado como a inspiração de O Poderoso Chefão (livro de Mario Puzo que se tornou um clássico do cinema). Já Dean O’Banion inundava o norte de Chicago com cerveja e uísque vindos do Canadá, enquanto Johnny Torrio contratava policiais para proteger seus interesses no sul da cidade.
Mas nenhum gângster se tornou tão lendário quanto Alphonse Capone. Filho de napolitanos, ele nasceu em 1899, em Nova York. Conheceu Johnny Torrio aos 14 anos e, com a Lei Seca, passou a auxiliá-lo no contrabando de bebidas em Chicago. Quando o rival O’Banion resolveu enfrentá-los, foi morto em sua floricultura. Em 1925, Torrio se aposentou, deixando Chicago inteira para “AlCapone, que expandiu o império ilegal para cidades como Saint Louis e Detroit.
Apesar de todos os assassinatos e outros crimes atribuídos a Capone, foi a sonegação de impostos que o pôs na cadeia. Em 1931, graças às investigações conduzidas pelo agente fiscal Eliot Ness, líder dos “Intocáveis” (grupo de agentes que combatia a máfia), Capone passou cinco anos na penitenciária de Alcatraz, na Califórnia. Morreria em liberdade, no dia 25 de janeiro de 1947 – apenas cinco dias antes de Andrew Volstead, o “pai” da Lei Seca.
Grande ressaca
Sob a Lei Seca, os bebedores se encontravam nos speakeasies. Eram bares clandestinos, muitas vezes subterrâneos, nos quais era preciso falar baixo (speak easy, em inglês) para não chamar atenção. O clima da época foi descrito em diversos livros. O mais célebre é O Grande Gatsby, de 1925, obra-prima do americano F. Scott Fitzgerald. O personagem-título é um contrabandista de bebidas que promove festas regadas a coquetéis. A Lei Seca, aliás, tem tudo a ver com a disseminação de drinques incrementados. O hábito servia para mascarar o gosto ruim dos destilados clandestinos – um exemplo é o bloody mary, à base de suco de tomate, que teria sido criado durante a proibição.
E os destilados não eram ruins só no gosto. Muitos uísques, runs e gins da época eram feitos de maneira tosca. Alguns continham substâncias tóxicas na fórmula – como alvejante, solvente de tinta e formol. A baixa qualidade das bebidas contribuiu para que os casos de morte por cirrose nos Estados Unidos praticamente não diminuíssem durante a Lei Seca.
Mas nem todas as mortes relacionadas à bebida tinham a ver com o fígado. Entre 1920 e 1935, as taxas de assassinato cresceram 30% nos Estados Unidos. Os americanos, contudo, seguiam suportando a proibição. Afinal, o país vivia uma época de prosperidade econômica. A situação mudou com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929: indústrias fecharam as portas e famílias perderam todo o dinheiro que tinham. Começava a Grande Depressão – que deixaria um em cada quatro americanos desempregado.
A crise foi decisiva para que a Lei Seca acabasse. Seus inimigos começaram a dizer que legalizar as bebidas criaria empregos, estimularia a economia e aumentaria a arrecadação de impostos. Em março de 1933, dias depois de assumir a presidência, Franklin Roosevelt pediu ao Congresso que legalizasse a cerveja. Foi atendido. Finalmente, em 5 de dezembro, a Lei Seca se tornou a única emenda da Constituição americana a ser revogada. O país viveu um clima de Réveillon antecipado, com fabricantes e bebedores saindo das sombras.
Hoje em dia, ainda há quem ache que a Lei Seca foi uma boa idéia. De fato, o volume de bebidas ingerido pela população diminuiu: o número de litros consumido em 1915 (último ano em que houve esse levantamento antes de a lei entrar em vigor) só seria atingido novamente em 1970. O problema é que, com a proibição, os americanos mudaram de hábitos. Como a cerveja era mais difícil de ser feita, eles passaram a preferir destilados, que contêm muito mais álcool. A Lei Seca fez os Estados Unidos beberem menos, mas beberem pior. Além disso, transformou os mafiosos em lendas vivas. “Nós tendemos a romancear homens como Al Capone e seus contemporâneos, mas eles eram tão violentos quanto os traficantes de drogas de hoje”, afirma a jornalista inglesa Lauren Carter, autora de Os Gângsteres mais Perversos da História.

Goles curtos

Momentos bizarros da proibição
De fogo
Partidários da Lei Seca defendiam a idéia de que um alto teor de álcool no sangue podia provocar combustão espontânea.
Suco divino
O movimento da Temperança chegou a reescrever a Bíblia tirando todas as referências a álcool. E insistia que Jesus não tomou vinho, mas suco de uva.
Numa fria
Nos anos 20, alguns desesperados usavam fluidos de refrigeradores para fazer bebida. Muitos deles morriam.
Tradição
Ainda hoje, alguns condados no interior dos Estados Unidos mantêm uma Lei Seca em vigor.

Coquetel sóbrio

Veja os principaisingredientes do debate que levou à Lei Seca
Tempero
No início do século 19, médicos, líderes religiosos e empresários americanos criaram o Movimento de Temperança. Diziam que beber destruía a saúde mental e levava invariavelmente ao vício. Os membros do movimento não eram conservadores, mas indivíduos que apoiavam idéias progressistas – como os direitos das mulheres e o fim da escravidão.
Movimento
Após o fim da Guerra Civil (1861-1865), a Temperança conquistou os conservadores. Em 1869, contra o álcool, foi criado o Partido Proibicionista. Cinco anos depois, veio a União Feminina de Temperança Cristã (com mulheres que invadiam bares e destruíam garrafas). Já a Liga Antibares, formada por fazendeiros em 1893, apoiava políticos que fossem favoráveis à proibição e recolhia dinheiro em nome da causa.
Pólvora
A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra, em 1917, deu aos defensores da Lei Seca um argumento decisivo: cereais eram artigo de primeira necessidade e não podiam ser desperdiçados para fazer álcool. Além disso, nacionalistas pregavam que fazer cerveja ou vinho (produtos tradicionais da inimiga Alemanha) era “antiamericano”.

Temporada internacional de seca

No século 20, diversos países falharam tentando proibir o álcool
No começo do século 20, usar a Lei Seca para resolver problemas sociais não foi uma idéia exclusiva dos americanos. “Ela foi testada em pelo menos 11 países, além de territórios e colônias, e acabou repelida em todos os casos”, diz o cientista político americano Mark Schrad, da Universidade de Wisconsin. A experiência vigorou em países como Islândia, Noruega, Finlândia e Suécia. A primeira proibição às bebidas foi instituída em 1914, pelo czar Nicolau II, da Rússia – o objetivo era manter a população mobilizada para a Primeira Guerra. O problema é que o comércio de vodca, a bebida tradicional russa, era monopólio do Estado. A queda na arrecadação foi uma parte importante da crise que culminou na Revolução Russa de 1917 e no fim do czarismo. Décadas depois, os comunistas também cometeriam o erro de mexer com a vodca. Em 1985, o presidente Mikhail Gorbachev liderou uma campanha antiálcool. O problema é que cerca de 20% do orçamento da então União Soviética vinha de impostos sobre a vodca. “Gorbachev tentou suavizar a queda de arrecadação imprimindo mais dinheiro, o que aumentou a inflação e deixou o povo descontente”, diz Schrad. Para ele, a desastrada campanha foi um dos fatores que colaboraram para a desintegração da União Soviética.

Saiba mais

LIVRO
Os Gângsteres mais Perversos da História, Lauren Carter, Planeta, 2007
Possui pequenas biografias dos 15 mafiosos mais famosos dos Estados Unidos – a maioria da época da proibição.

SITE
www.questia.com/PM.qst?a=o&d=59072522
Versão digital de Prohibition: The Era of Excess (1962), obra clássica de Andrew Sinclair sobre o impacto da Lei Seca.

Tiro n·água

Para pesquisador, Lei Seca foi um fiasco comparável à atual ocupação do Iraque
O cientista político americano Mark Schrad, da Universidade de Wisconsin, é um dos maiores especialistas mundiais em Lei Seca. Ele está escrevendo um livro sobre países que proibiram as bebidas – e não poupa críticas a esse tipo de medida.
História – A proibição falhou?
Mark Schrad – Se a intenção era reduzir problemas de saúde e sociais causados pelo álcool, certamente havia maneiras melhores de se fazer. Eu a considero uma falha. Se a guerra no Iraque pode ser considerada o maior erro da política externa americana, a Lei Seca foi o maior erro da política interna. Bem, se o objetivo no Iraque era pegar Saddam Hussein, então a guerra foi um sucesso. Entretanto, você não pode fechar os olhos para o custo de vidas inocentes, o dinheiro e as tropas perdidos e a guerra civil que se instaurou no país, que pesam contra o “sucesso” no Iraque. O mesmo pode ser dito sobre a proibição: ela foi bem-sucedida em reduzir o consumo de álcool? Sim, temporariamente. No entanto, ela resultou em corrupção, crime e contrabando.

Que lições podemos tirar da Lei Seca?
Podemos aprender com o perigo de se legislar sobre o comportamento individual com base em convicções morais.

Existe algum paralelo entre a Lei Seca e a proibição das drogas?
Eu costumo evitar analisar a Lei Seca da mesma maneira que a “guerra às drogas”, desde que isso implique colocar lado a lado todas as proibições. Acabaríamos com a proibição das drogas e todo mundo ficaria bem? Eu discordo. Há proibições úteis. Por exemplo: existem contrabandistas de marfim, drogas e escravos, mas isso quer dizer que essas proibições são um fracasso? Significa que devem ser revogadas? Creio que não. O fato de a Lei Seca ter sido um erro não deve ser usado como argumento contra todas as formas de proibição.

Fonte

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