quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Artigo: A Matemática no tempo das pombas falantes

Artigo de Luiz Barco, comentando as dificuldades das pessoas em relação a problemas matemáticos de Geometria e Aritmética.
Por Luiz Barco

Bom dia, minhas cem pombas", disse o gavião a um bando de avezinhas que passavam. "Cem pombas não somos nós", disse uma delas. "Para sermos cem é necessário outro tanto de nós, mais metade de nós, mais a quarta parte de nós, e contigo, gavião, cem aves seremos nós." Este é um típico problema daqueles manuais antigos de Aritmética, que vinham recheados de curiosidades, cuja importância os modernos teimam em não enxergar ou sentir seu sabor. Hoje, banidas a Geometria e a Aritmética dos nossos cursos elementares pela formação míope que nos é imposta, os problemas são resol-vidos, quando o são, pela tradução algebrizada dos seus enunciados.
Mas, apesar de tudo, tais questões continuam a estimular um grande número de pessoas. Prova disso foram os numerosos telefonemas e cartas de leitores que recebi a propósito da Edição Especial de Jogos da revista SUPERINTERESSANTE, solicitando referências sobre os problemas que ali apresentei. Um deles me procurou a propósito de uma das muitas curiosidades que o professor Mello e Souza publicou no livro Diabruras da Matemática, de 1943. De algum modo, o leitor ficou intrigado com uma propriedade dos números 9, 99, 999, 9 999, etc. E mais ainda com a declaração do autor, que finalizava com um comentário mais ou menos assim: "Peça a um amigo bom em Matemática para explicar a razão dessa estranha propriedade matemática. A explicação deve ser dada em dois minutos e meio". O jovem, interessado na matéria, reproduziu a brincadeira, mas ficou insatisfeito, pois não chegou à solução rapidamente. Veja se você descobre. Escreva um número formado exclusivamente de algarismos nove — 999, por exemplo.
Ache um múltiplo qualquer desse número — por exemplo, 17 x 999, cujo resultado é 16 983. Adicione um número qualquer ao resultado anterior (315) 16 983 + 315 = 17 298. Separe o número formado pelos três últimos algarismos (298) e some com o número formado pelos algarismos restantes (17): 298 + 17 = 315.
O número resultante, 315, é o mesmo número que tomamos ao acaso e somamos com 16 983.
Para você se familiarizar, tentemos um novo exemplo. Escreva o número 9 999. Encontre um múltiplo qualquer, como 51, por exemplo. Multiplicado por 9 999, resulta 509 949. Adicione 874 e você obtém 510 823. Separe o número formado pelos quatro últimos algarismos (0823) e adicione o número que restou = 823 + 51. Essa soma recu-pera o número 874, adicionado ao acaso. Observe que, quando tomamos 999, separamos um número de três algarismos. No segundo exemplo, tomamos 9 999 e separamos um número de quatro algarismos. Isto é, a quantidade de algarismos a ser separada é a mesma da quantidade de noves do número inicial. Procure encontrar a razão, porém, pode levar mais de dois minutos e meio. A observação do professor Mello e Souza era apenas uma brincadeira. Afinal, a Matemática não é ainda um esporte olímpico e você pode ir melhorando sua marca devagar.
Para ajudá-lo na descoberta, chamo sua atenção para o seguinte: 999 é igual a 1000 menos 1. Da mesma forma que 9 999 = 10000-1. Ou seja, multiplicar um número k por 99 é o mesmo que multiplicá-lo por 100-1, que resulta no próprio valor de k acompanhado de dois zeros, menos o valor de k. Com essa dica, você segue sozinho. Mas, afinal, o que tem tudo isso a ver com o problema das pombas? Repare que, sem o gavião, elas seriam 99 aves e esse total iria corresponder a uma fração imprópria do número de pombas obtida pela adição 1 + 1 + 1/2 + 1/4.
Faça as contas e conclua que eram 36 as pombas do começo de nossa história.
Se alguém perguntar se o gavião comeu alguma pomba, responda que nosso gavião era vegetariano. Se você se surpreender com isso, lembre-se de que, quando escrevemos, estamos exercendo uma das últimas fatias de liberdade que nos restam: construir no papel e na imaginação coisas que já existiram e não existem mais e outras que nunca existiram, como pombas falantes e gaviões vegetarianos.

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